sexta-feira, 31 de julho de 2009

Alexander sat down and cried because there were no more worlds to conquer

O meu pai cita muitas vezes um trecho de uma carta do Fernando Pessoa a não me lembro quem, em que, a propósito sabe Deus de quê, Pessoa escreve que “os sinos da minha aldeia são os da Igreja dos Mártires, ali ao Chiado”. Não sei a que propósito vinha a frase original; quando o meu pai a cita, é sempre no contexto do seu (dele, do meu pai, não do Pessoa) amor pelo Chiado, pela Baixa, por Lisboa. Quando não vivia na prodigiosa capital deste país prodigioso, o meu pai ardia por ela de um amor intenso e esgotante, que em visitas de fim-de-semana aproximadamente mensais o fazia passar infindáveis horas a calcorrear as famosas (qual Roma!) colinas – as da Baixa, especialmente, em marchas forçadas queirosianas (não flanava, trotava, do Passeio Público – a Avenida da Liberdade – à Casa Havaneza), mas também a do Castelo, em sábados madrugadores de feira da ladra, condescendendo mesmo, por tardes preguiçosas e soalheiras de estio, em baixar às planuras de Belém e Pedrouços (despovoadas por deprovidas de areais plagiformes e centros comerciais de ares superiormente condicionados), em peregrinação, inicialmente, às relíquias arqueológicas da Exposição do Mundo Português (“Mundo Português” – a ideia é assustadora...) de 1940 e, fatidicamente, por ficar para aqueles lados, ao Museu de (é “de”, não “da”) Marinha. O amor por Lisboa – uma absurda perversão denominada olissipofilia – passou de maçador (o preço pelas ausências de horas que os passeios de Ulisses implicavam era ter de lhe ouvir o relato circunstanciado das odisseias, complete with “depois, meti pela rua agora chamada de X, mas que no século XVIII era conhecida como zzzzzzzzzz...) a dispendioso, por se manifestar na aquisição de quadros, gravuras (serigrafias, litografias, coisografias de toda a estirpe) e de sebentas, compêndios, cartilhas, cartas (mapas) e cartapácios desconjuntados, tudo versando, naturalmente, sobre olissipografia. Mas um mal nunca vem só: uma curiosidade pelas coisas náuticas concebida sem pecado à beira-Tejo e nas solitárias salas do Museu citado desaguou (boa escolha de verbo) no interesse pelos “instrumentos científicos” relacionados: vieram as "obras de referência", depois, claro, os objectos, primeiro timidamente, depois em massa: quadrantes, sextantes, octantes, miras, escópios de diversas grandezas, bússolas, agulhas – de marear –, higrómetros, barómetros, odómetros e uma infinidade de outros coisómetros). O interesse fez-se paixão: louças e casquinhas cómico-marítimas (chávenas, pires, pratos, travessas, terrinas, molheiras, bules, cafeteiras, mas também saboneteiras, lavatórios, jarros e até uma casa-de-banho de cabina inteira). Não podiam faltar – não faltaram – modelos a várias escalas de embarcações de todos os géneros e épocas (clippers do chá, carracas quinhentistas, barquitos de pesca bretões e navios-baleeiros da Terra-Nova, galés reais, paquetes transatlânticos, fragatas trafalgantes e couraçados jutlantes), mais os modelos dos respectivos aparelhos e apetrechos – âncoras, botes salva-vidas, artilharia... When possible, the real thing: um par de rodas do leme, um telégrafo (o objecto cónico em metal encimado por um semicírculo com uma alavanca -“comunicando à casa das máquinas a partir da ponte a marcha desejada do navio” – que sempre se recusava a obedecer ao capitão Haddock), que le grand cric me croques, remos, roldanas, bóias, lanternas, vários metros (e dezenas de quilos) de uma corrente de âncora, uma multidão de objectos flutuantes e submersíveis não identificados. Com o passar dos anos, a gama das curiosidades-interesses-entusiasmos-paixões foi crescendo... A livralhada sobre os navios a vapor não se calava sobre o desenvolvimento paralelo do comboio. Foi uma iluminação: começou a chegar da Baixa sobraçando calhamaços sobre caminhos-de-ferro. Não tardaram a acumular-se comboios e locomotivas eléctricas, miniaturas (funcionais) de máquinas a vapor, lancheiras de guarda-freios (juro), bonés de maquinistas; instalou linhas em duas divisões de dois apartamentos no mesmo prédio (para ter onde meter a tralha, fora expandindo a carteira imobiliária), e depois no anexo da casa onde passávamos férias... E atenção: o homem, quando descobriu Lisboa, já era coleccionador de monta (bibliotecas queirosiana e napoleónica – centenas de volumes, uma e outra –, soldadinhos de chumbo, facas e baionetas e pistolas e revólveres e caçadeiras e espingardas suficientes para equipar uma pequena milícia, estojos de desenho, instrumentos de topografia...). Lisboa limitou-se a levar ao absurdo a compulsão completista. Cada entusiasmo adjacente aos outros exigia bibliografia própria, gerando por sua vez (danos colaterais...) novos interesses, numa reacção em cadeia irreprimível que ia atafulhando as estantes, as paredes, os soalhos, transformando em tenebrosas e poeirentas masmorras, despensas, casas-de-banho secundárias, quartos, salas, enfim uma casa inteira, numa invasão impiedosa e imparável: como ele próprio dizia, sorrindo, satisfeito consigo mesmo, era “coleccionador de tudo”. Só faltava entregar-se todo a Lisboa, para consumar o grande, o maior dos amores. Reformou-se. Lá vieram (ele, as suas colecções, a minha Mãe, que já estava havia muito reformada, mas que nunca se conformara à ideia de abandonar tudo por Lisboa). Foi há dois anos. De então para cá, admite-mo por vezes ele próprio, foi uma vez à Feira da Ladra. Nem uma ao Museu de Marinha. Já não vai em busca da Lisboa antiga; pôs de lado as idas ao Museu Militar, o roteiro dos prémios Valmor, a busca pelos vestígios da arquitectura do ferro ou da arte nova e o prazer masoquista (que o lançava em indignadas e deliciadas diatribes contra os cafres deste país de cafres, enfim pior que a Bulgária) em ver desfazer-se, em risco de “colapsar”, como deve agora dizer-se, o melhor da pobre arquitectura da miserável capital deste país miserável... Lisboa traiu-o. Tem carros a mais, gente a mais, barulho a mais, dias úteis e dias sem praia a mais. É quente, é fria, chove dentro dela, tem correntes de ar. O meu pai não sai de casa há dois anos. Bebe, fuma, deprime-se, amua, entre as ruínas cobertas de cinza, pó e nada das suas colecções. Já não quer, já não consegue lisboar. É verdade o que dizem: não deve voltar-se a um sítio onde se foi feliz (ou onde se acreditou que ser feliz seria possível). You can never go home again.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Não vire as costas...

...à disfunção eréctil. Vim aqui check the action. No action. No problem. E dei de caras, so to speak, com um dos anúncios em que este meu blog é fértil (em geral a produtos de emagrecimento, créditos por telefone, etc.), e que, com a extraordinária afluência de público que o caracteriza, me hão-de em breve tornar rico. "Não vire as costas à disfunção eréctil". É boa. Think about it. Tenho disfunção eréctil - um supônhamos. Sinto-me abatido, na fossa, de crista caída, cabisbaixo (get it?). Entro em negação - seguindo o modelo Kübler-Ross (denial, anger, bargaining, depression, acceptance)... Viro as costas à disfunção coiso... Shit. Cá está ela, à minha frente, como de costume. Virar-lhe as costas é tão difícil como encarar bem de frente furúnculos no rabo. Exige talentos de contorcionista ou de miúda do exorcista. Ou exigiria - lembremos, tratava-se de um supônhamos. Na verdade, essa é uma das poucas disfunções que persistem em escapar-me: se posso queixar-me de alguma coisa, nesse campo (para além de da falta de action), é de hiperfunção eréctil (talvez, come - get it? - to think of it, por causa da falta de action). Priapismo. Sou um sátiro, um verdadeiro deus-pan à espera da sagração da Primavera, cascudo e cornudo, de olhinhos lúbricos sempre alerta, sempre à espreita... Ó ironia cruel, ó Deus-deus que dás nozes a quem não tem dentes... E pronto(s). Melhores dias virão (mas só depois de virem piores).

sexta-feira, 19 de junho de 2009

¿Que es más macho?

Pineapple o knife? Acordei a cantarolar "Smoke Rings", da Laurie Anderson... A Laurie é casada (ainda?) com o Lou Reed, mas no tempo, in illo tempore (há mais de 20 anos), em que eu a considerava, kind of, a mulher ideal - bonita (é discutível, bem sei), inteligentíssima, criativa, espirituosa (tudo indiscutível), era uma miúda livre (acho eu), e talhada (achava eu) para um gajo ideal (all of the above a propósito da mulher ideal, menos a beleza). Claro que ela frequentava a cena downtown de Nova Iorque, enquanto eu, fora para ir (de dia) à Contraverso, não punha os pés sequer no Bairro Alto (que era a cena downtown NY de Lisboa). Não obstante esse pequeno obstáculo de falta de intersecção dos nossos círculos sociais, a minha imaginação - nesse tempo, tinha alguma imaginação - era bem menina para nos fazer dar de caras um com o outro... enfim, não sei onde nem em que circunstâncias (foi há muito tempo, in illo tempore), mas com resultados cupídicos inevitáveis. Só para clarificar: eu não levava a capa do Big Science (era um LP - uma rodela de plástico com um diâmetro de 30 cm, for those of you out there que ainda não tinham nascido - capa, portanto, a condizer) para a minha modesta casinha-de-banho na minha modesta casinha ali ao cemitério da Ajuda (tenho queda para moradas próximas de cemitérios; agora ironicamente, do dos Prazeres - a minha última morada?) para obter a solitária gratificação que, então como hoje, era o alfa e o ómega da minha vida sexual; não: eu e a Laurie éramos soulmates (nesse tempo, tinha alguma alma, ou se calhar, era a minha imaginação a arrebatar-me), e o nosso amor vindouro era uma coisa pura, elevada, espiritual (o resto viria a suo tempore, em Latim macarrónico). And what is the point of all this? E porque é que tantas línguas bárbaras se sucedem neste arremedo de o que quer que isto seja, e porquê tantos travessões, parênteses, boxes within boxes, reticências (...)? Não faço ideia. Eu e a Laurie temos certamente uma coisa em comum agora - estamos velhos, gastos, acabados, uns cavacos (do Lou Reed nem falo). Cupido não chegou a fazer de nós um Kebab; arrastei-me pelo BA, durante anos, mas não dei por lá de caras com a Laurie (apesar de ter espreitado, na Expo98, o Lou). Em NY, nunca estive nem estarei... Mas acordei hoje a cantarolar o smoke rings ("Desire! It's cold as ice and then hot as fire. Desire! First it's red and then it's blue, and everytime I see an iceberg it reminds me of you"), e dei por mim a pensar que deixei de pensar fosse em quem fosse, a concluir que I no longer love the way anyone holds their pens... and pen(pausa)cils... Mister Heartbroken, that's me.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

And now for nothing remotely different

...É o snake, ao que parece. Ao que parece, há perto de um mês que aqui não há action. Apetecer-me-ia dizer (fuck it - apetece-me, e que se foda o futuro do pretérito) que é a arte a imitar a vida, mas nem o que para aqui está pode ser qualificado como arte, nem a subtracção dos meus dias pode ser qualificada como vida... No action, em todo o caso, diz tudo. Há bons motivos para o silêncio. Fiz 41 anos. Razão tinha o paco bandeira (olá, paco, por onde tens tu andado?) ao falar da tortura dos 40. Everything falls apart (husker du): the sleep of the just tired (g. vidal) foi-se - nem me lembro da última vez que dormi bem; as dores - não as existenciais, mas as físicas - tornaram-se constantes (ombros, costas, dentes, cabeça): dor durante o dia, dor durante a noite, em configurações variadas (cabeça e costas, neste momento, ontem todas ao mesmo tempo) e diferentes intensidades, mas constantes... A sinusite, entusiasmada com a imprevisibilidade do tempo (calorão há três ou quatro dias, hoje a acenar com chuva-chuvinhá, por onde andas tu, linda de suzá?) came back with a fucking vengeance. Tem-me valido a música (na acepção mais lata, concedo)... É irónico que alguém tão impassível como eu goste tanto de música que vive nos extremos não só do espectro sonoro (entre os subsons e os infra-sons nada senão ruído branco) como nos do espectro emocional - ódio, pânico, luxúria, desespero. Melancolias, tristezas sussurradas, belezas funéreas (noutros tempos o pão meu de cada dia) parecem ter por inteiro perdido lugar no imenso vazio do meu ínfimo universo: nick drake, durutti column, blue nile, to name but three, por onde têm vocês andado? Tudo o que ouço poderia fazer parte da banda sonora dos gritos do munch (não dos do wes craven) e, no entanto, olhando para mim, eu (mais ninguém o faz), em cuja existência nos últimos anos nem o mais subtil dos instrumentos detectaria uma oscilação, um estremecimento, acabo sempre a perguntar-me se é por falta de alma (ânimo) que me empanturro assim de som e de fúria... O lado positivo de tudo isto é que, tendo começado esta jeremíada com a intenção de deixar um post-it (três linhas a ameaçar a chegada, um destes dias, de trinta) acabei por dactilografar uma coisa em forma de assim que, considerando a crise e as baixas expectativas de um público à beira da extinção, não me parece indigna de suceder às merdas solipsistas que a precederam...

terça-feira, 12 de maio de 2009

Discipline is his passion

O meu pai diz que só come por uma questão de disciplina. Ao ouvir-lhe a frase, nunca deixo de rir para comigo: o homem levanta-se (com grande relutância) às onze; às duas da tarde, já está geralmente com os copos; fuma duas dúzias de cigarrilhas por dia; passa todo o tempo em que não está deitado sentado; excepto nos quatro anos da tropa, nunca tomou um duche: o banho de imersão diário é um ritual de uma hora que assegura a transição da cama para a “deck-chair” (igual àquelas em que, nos transatlânticos de que tanto gosta, os passageiros da primeira classe tentavam enganar o enjoo) em que, refastelado, pouco depois do meio-dia, já está a beberricar o seu primeiro whisky; no que toca a alimentos sólidos, privilegia gelado, chocolate e bolachas, condescendendo (porque é pretexto para beber vinho) em petiscar uma fracção do que para ele cozinha a minha mãe (que também lhe lava e passa a ferro a roupa, lhe faz a cama, etc.). Sai de casa (não contando com as incursões bidiárias ao “Carrocel”, onde toma café, o único vício que admite ter, e, semanais, ao banco), meia-dúzia de vezes por mês – para ir à Baixa ou às Amoreiras comprar mais livros, mais dvd’s (e, em grande segredo, com dissimulações de correio de droga em aeroporto, mais comboios eléctricos); nunca entra num supermercado ou numa mercearia, nem, desde há uns meses, numa tabacaria – tudo o que bebe, tudo o que come, tudo o que fuma, é comprado por mim; nunca paga uma conta senão por meu intermédio – entrega-me os extractos e o dinheiro, e eu trato da chatice de ir ao multibanco... Esta descrição da vida dele (e, por implicação, da minha) suscita geralmente reacções do género “mas porque é que te sujeitas a isso? Ele que se desenrasque, que trate de si próprio!”. O problema é que ele não o faria; se eu me demitisse, o fardo transitaria (mais um) para a minha mãe, enquanto os suportasse (aos fardos e ao marido); depois, o homem arrastaria o tempo que lhe restasse a embebedar-se pelos cafés da vizinhança, como tantos alcoólicos... Antes de mais, “o homem” é meu pai: por absurda que seja a minha vida, a metade “Y” dela, devo-lha. Para além disso, quando morrer, é com o dinheiro que juntou (ele, essencialmente, que a minha mãe, poupada e sensata que sempre foi, era professora de liceu) que eu tenciono esperar (livre da tortura do trabalho – das de todos os trabalhos) pelo fim dos meus dias. Por isso aguento, e aguentarei o tempo que for preciso... Mas quando o ouço falar de disciplina, não posso impedir-me de rir...

terça-feira, 28 de abril de 2009

I'm the ugliest guy on the lower east side

Gosto, em matéria de gostos, do que é feio. Não sei em que raio de português é dito, mas é dito assim: quem o feio ama, bonito lhe parece. Comigo dá em crime e castigo, taxi driver, unknown pleasures. É a minha santíssima trindade estét(r)ica. Em livro, filme ou música, raramente li, vi e ouvi mais feio. Se do trio saltar para a escala das dezenas, o resultado é o mesmo – viagem ao fim da noite, morte a prestações, kafka, joseph conrad, lovecraft; a quadrilha selvagem, dead ringers, a mosca ou a laranja mecânica; tudo o que é joy division, early swans/sonic youth, neubauten, cabvolt, sunno)))... A bit of the old ultraviolence, a lot of plain old ugliness. Nem toda a gente concordará, nalguns casos, que “feio” lhes caiba como qualificativo (quem o feio ama, bonito lhe parece). No caso do dostoievski (perdão pelas minúsculas a todos os visados, supra e infra), a sensação de fealdade que sempre tive pode resultar da dificuldade de traduzir para línguas humanas o russo; no do conrad, do facto de a língua inglesa não ser a sua pátria; no do céline, do ódio transbordante e sulfúrico pela humanidade; no do lovecraft, da falta de (atenção...) craftsmanship, de “jeito” (era um profeta do mal absoluto, sem os recursos estilísticos que exprimir o mal absoluto deverá exigir – uma espécie de idiota iluminado, ou de poe sem o refinamento deste). Seriam explicações discutíveis, se necessidade houvesse delas; no meu caso não há necessidade de explicações e os gostos não se discutem: desordem (“disorder” – joy division), indisciplina, às vezes caos puro e simples, tocam-me mais que a beleza. Talvez seja por a primeira percepção “adulta” que tive de mim próprio ter sido a da minha falta de beleza: descobri-me feio muito novo (como muito novo me descobri inteligente e emocionalmente desligado, se não pior): o primeiro e inultrapassável desgosto da minha idade da razão foi essa fatal fealdade apercebida num clarão aos doze ou treze anos; daí por diante, apesar dos ocasionais desmentidos que por palavras (e actos) recebi de raparigas simpáticas (sympathetic), nunca mais me libertei da sensação fundamental de plain old ugliness; “feio” ficou como o primeiro adjectivo que me ocorre para definir-me. Os músculos e a magreza, a pose distante, a timidez vencida a copo, nada remediaram. Feio. As raras raparigas compassivas, mesmo aquelas que, mais que compaixão, sentiram (pouquíssimas) paixão, expliquei-as – e afastei-as – com o ditado impopular acima, e com o há gostos para (por) tudo. O drama (cada vez menos um drama, à medida que o tempo se vai esgotando), é que, no tocante (I wished) a raparigas, o meu gosto nunca foi menos que absolutamente convencional, académico: é a beleza canónica que nelas me atrai desde sempre (e as primeiras recordações que tenho dessa atracção estão entre as mais remotas que tenho – o meu primeiro ideal, a primeira estrela pornográfica da minha constellation of smut, foi a anita dos livros da dita), que me me prende, me cativa (no sentido saintexuperesco, que vai para além da mera sensualidade); simetria, graciosidade, feminilidade, cegam-me a todos os defeitos (ou simples ausência das qualidades que em abstracto prezo, como a da inteligência) que possam ter. Nada de muito original, num homem; infelizmente, parto do princípio de que elas me pagam na mesma moeda. Gosto do feio, mas não gosto de mim; não gostando de mim, quem gostará? É como no anúncio, mas sem final feliz.

domingo, 19 de abril de 2009

Facebook

Não é nada mau: segundo o facebook, tenho 18 amigos. Retiro a este razoavelmente impressionante total duas irmãs e dois cunhados. Uma das irmãs é "the special one", e um dos cunhados (adivinhem com qual das irmãs está casado...) é um amigo, mas são família, e decidi que família não conta. Tenho 14 amigos. Não, wait, há uma prima no lote. Marcha. 13. Não seria pouco, ainda assim, só que acabo de reparar que um dos sobreviventes é um tal "meninos do rio". Seja quem for, salta. Dos 12 que restam, um (uma) é a mulher de um (um). Simpática, inteligente, bonita, mas devo ter estado com ela uma dúzia de vezes na vida; sóbrio, creio que nunca. Parecem-me fundamentos para desqualificação. A contagem vai em 11... as faces de 6 dos quais não vejo há mais de dez anos. Eram part-time friends - apesar de três deles, se eu não fosse a pessoa (?) que era, terem podido ser mais que isso - e eu fiz (primeiro porque bebia, depois por ter deixado de beber) com que se transformassem em zero-time friends. 5. A coisa está a ficar desanimadora. Tenho de pensar bem antes de continuar a subtracção. Há uma Kitty. Amiga de uma irmã. Conheço-a há muito tempo. Tem valor sentimental. Daí a falar de amizade... Dos quatro resistentes, três são gajos. Ladies first. Foi o primeiro amor da minha vida. Foi o único amor da minha vida. Por ela, entre os meus dezoito e os meus 28, não teria havido nada que eu não me julgasse (convictamente) pronto a fazer. Mas não fiz nada que fizesse ou pudesse ter feito diferença. Se calhar (é o mais provável) não fiz nada. Nem teria valido a pena, concluí dolorosamente tarde (porque o amor, para além de cego, é burro), fazer o que quer que fosse - love does not conquer all, e em matéria de amor (como em de amizade, como em de quase tudo), eu estou muito abaixo do limiar de percepção por seres humanos. É a minha história triste; ela também tinha uma (e bem pior que a minha). Adiante. 3 gajos (como o álbum dos ZZTop). Um está em Macau, o outro em Oxford (ou Cambridge; same difference). Demos de caras uns com os outros há vinte anos, e durante os dez seguintes, partilhámos (hate this fucking word) tanta coisa que, quando se foram embora, foram-se embora. Há graus de intimidade que não suportam a distância; também havia muitos ressentimentos, muita agressividade, muita competição. Da intimidade nada ficou; do resto, sobrou o suficiente para impedir qualquer reaproximação. Cômputo final: 1. Que dispensa o Facebook. Para que estou então no Facebook? Para que ele me permita a ilusão ocasionalmente reconfortante de contar no mundo 18 amigos. O que não é nada mau.

terça-feira, 14 de abril de 2009

sábado, 11 de abril de 2009

Têm preocupações, pequenas e grandes – estacionar o carro, fazer o dinheiro chegar para um tudo feito de cada vez mais coisas, aturar o emprego que pode acabar a qualquer momento, educar os filhos, aguentar um casamento gasto, esgotado, sem desejo, sem nada senão as preocupações a ampará-lo... Têm alegrias: aniversários, o clube que ganhou e está na luta pelo título, roupas novas, um creme ou uma dieta que funciona, não notas?, os dias bonitos que pedem praia, saídas com amigos, as férias, uma ou outra noite como no início, um gesto irreflectido de ternura, às vezes nada, só vontade de sorrir... Antecipam, em conversas de que apanho fragmentos, os prazeres e as contrariedades; alegram-se, riem, enervam-se, algumas choram, outras enfurecem-se, fazem planos, sonham mudar de vida, refazem os planos, a vida continua, esquecem os planos, esquecem-se de que fizeram planos, vivem. Cruzam-se comigo pelas ruas, a pé ou de carro, impacientam-se atrás de mim ou à minha frente em filas nos supermercados, bebem café ou cerveja, gozam o sol, sentadas umas com as outras em esplanadas, cochicham, preocupadas ou contentes, fumando, à porta de lojas, de escritórios, de centros comerciais... As da vizinhança foram-se habituando a mim, sempre sozinho, sempre apressado, sempre educado, novo ainda mas mais velho, sorridente ainda, mas mais triste. Chegámos aos bons-dias e boas-tardes, fomos dizendo umas coisas sobre o tempo, sobre futebol, sobre nada. Algumas, mais distraídas, tomam-me por uma delas, outras, suponho, fingem fazê-lo. À noite, ocasionalmente, apanho-lhes as silhuetas em contraluz enquanto jantam em família; depois vêem televisão (é o que significam os clarões intermitentes na semiobscuridade das salas). Mais tarde, ouço-as baixar persianas; se olharem para as minhas janelas, verão os clarões intermitentes na minha sala, ou, mais tarde, só a escuridão. Todos os dias janto, vejo televisão, durmo. Os meus dias acabam, como os das pessoas, todos os dias. Um dia, agarrando no que lhes resta de memória, todas fazem um balanço: os carros que foram mudando até não haver nenhum, o dinheiro que nunca chegava mas que foi chegando, o emprego que até deixou saudades, os filhos que tiveram filhos, o casamento que aguentou afinal tudo menos a morte... O meu balanço está feito há muito; é curto, guardo-o para mim. Quando a soma do tempo se aproxima do zero, e tudo se embota e se faz difuso, à beira do fim é frio o que se sente: está sempre frio. Para quem quis viver como para quem se limitou a ver, a única coisa, a última coisa antes do fim é o frio.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Tout comprendre, c'est tout pardonner...

Um esclarecimento: não referi mulheres em contraposição a guineenses/ucranianas; as g/u em questão são mulheres, mas já têm emprego - limpar as casas das mulheres que tiveram de arranjar emprego para se livrarem da ingratidão não remunerada reservada às donas-de-casa. Quanto aos preconceitos cujos miasmas pestilenciais o subtil nariz da Clara detectou por aqui, são incontáveis, quase universais, mas fazem de mim mais um misantropo que um misógino. Avalio a Humanidade tomando como padrão o único ser humano que conheço verdadeiramente - eu -, e não podia deixar de sentir por ela (a Humanidade), senão desprezo, ou pior. Em todo o caso, sempre me permito notar que, há não muito tempo, a Clara demoliu um segurança por lamber a mão que o alimentava (a do DOUTOR BALSEMÃO), mordendo a da Clara - Clara essa que não deixou, entre considerandos de vária ordem indicativos do primarismo, mesquinhez e falta de criatividade e de inteligência que constituem invariáveis atributos dos rentacops, de salientar, depois de mencionar quão mal paga é no seu (criativo, quand-même) trabalho, as dimensões colossais do BMW paternal (para que não houvesse confusões)... A Clara estudou num colégio de freiras, e deve as suas pernas de tânagra ao ballet (o securitas foi até ao antigo nono ano em Chelas, e deve o rabo gordo a estar sentado o dia inteiro diante de um monitor de cctv). Se o lambe-botas for despedido, acaba no Linhó depois de uma curta carreira como carjacker de pessoas como o pai da Clara; se a Clara for despedida, diz-me a subtil (e bífida) língua que me serve de nariz, acaba, na pior das hipóteses, a dormir na garagem da casa (talvez não tão grande como a do DOUTOR BALSEMÃO) onde o Pai abriga o seu BMW gigantesco (e a mãe deita o seu Audi ou Mercedes)... Enfim, há sempre uma pedra a jeito quando passamos por casas com telhados de vidro - no caso da minha casa, bem sujo.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Spring cleaning

Dia de limpezas. Decidi começar pela cozinha – que é como quem diz, pela sala (vivo num submarino, só lhe falta ser amarelo; mais uns anos de fumo tratarão desse detalhe). Supostamente, o alumínio não oxida... O do meu escorredor de louça (se é que é assim que se chama...) está coberto de ferrugem e de sarro como os destroços de um navio encalhado. A palha-de-aço é inútil contra aquilo: só consegue deixar-me os dedos em sangue. Lembro-me de que tenho algures um velho par de luvas de borracha... Rebusco os armários. Não o encontro. Depois encontro-o. Está a desfazer-se. Paciência. Raspo as estratificações com uma velha faca de cozinha. De tão romba, só é útil como espátula - serve. Lembro-me do Vim Clorex e do esfregão Bravo, e do anúncio (na altura dizia-se “réclame”) do Ajax limpa-vidros: uma mulher nova, a limpar uma janela num apartamento; a câmara afasta-se, forma-se um quadriculado que vai crescendo, surgem mais mulheres, todas sorridentes, todas a limparem janelas; de mais longe ainda, vê-se a fachada inteira – é um prédio alto e moderno (“estilo internacional”), mas sem a desumanidade mancuniana do brutalismo, e há centenas de donas-de-casa felizes, de movimentos sincronizados, acenando, de paninho na mão. É uma imagem de harmonia doméstica que ainda hoje me enternece (a ausência de maridos só a confirma: estavam, felizes também, a fazer o que faziam os maridos: a trabalhar para a família). Happy days. É estranho, mas é assim, feliz e protegida, que recordo a minha existência nesse tempo (e, como o anúncio, a preto-e-branco. Abençoada memória, ainda que saiba que é falsa)... Voltei ao presente. Espreito as janelas. Estão tão manchadas que parecem de vidro fosco, mas limpá-las fica para a próxima, ou para a seguinte a essa. Cleanliness is next to godliness, mas o bom é inimigo do óptimo (ou o contrário. Paciência). Passo ao fogão, que está coberto de estalagmites. Poderia identificar a partir delas a minha ementa nos últimos dois meses, mas não é preciso – como sempre a mesma coisa. Destruir aquele aglomerado só com escopro e martelo. Decido-me por um gesto simbólico – umas passagens com um pano vileda imundo – e fica com um aspecto satisfatório (para os meus padrões de higiene actuais: desde que recuperei, mais ou menos pelo menos, a saúde mental, decaíram notoriamente. Que se foda. Alguma vantagem haverá na solidão absoluta). Passo, com dois passos, à casa-de-banho. Graças a Deus, alguém inventou a lixívia. Tenho dois frascos de litro e meio. Encho a banheira com água quente, deito lá para dentro a cortina do chuveiro (não é fácil mantê-la imersa: tenho de usar dois velhos halteres como lastro) e o tapete de borracha, rego tudo com o conteúdo de um dos frascos, e deixo a marinar. Abro o outro frasco, despejo metade pela parede abaixo (é de uma pedra ornamental que já foi castanha com veios esbranquiçados – agora, atapetada de fungos, está uniformemente alaranjada). O resto da lixívia vai para a retrete. O ar satura-se de vapores de cloro. Tenho a sensação de que a temperatura sobe de repente; fujo para a sala/cozinha, sento-me e acendo um cigarro. Apesar das janelas abertas, o cheiro pela casa é sufocante. Ocorre-me que posso ter destruído a penicilina do século XXI, o novo superantibiótico contra as novas superbactérias. I can live with that. Volto à casa-de-banho. Não estará tudo resplandecente, mas aguenta outro par de meses de desleixo. Ardem-me os olhos, parece-me sentir picadas no cérebro. É por isso que não se deve abusar da limpeza. É tóxica, a lixívia, e pouco amiga do ambiente. Não tenho nem virei a ter filhos, e não tenciono andar por cá mais que outro par de décadas. A Terra há-de durar até me comer, e portanto paciência, e que se foda o ambiente - ponho a banheira a vazar. A cortina ficou impecável (mas pendurá-la naquelas argolinhas de plástico é uma chatice que me apetece deixar para mais tarde. Deixo-a para mais tarde). O tapete parece ter perdido em flexibilidade o que recuperou em brancura - as bordas esfarelam-se. Os halteres também não se deram bem com a lixívia - perderam o que ainda tinham de tinta. A retrete não ficou mal (mas continua a ter uma auréola avermelhada na linha de água; como é – pun intended – for my eyes only, paciência). Acabei a corveia, por hoje. Estou cansado: os trabalhos da casa são duros: não me espanta que, tendo escolha, as mulheres prefiram ter empregos e deixar as lides domésticas para guineenses e ucranianas. Não posso pagar guineenses nem ucranianas, tenho de tratar eu do assunto. Paciência. Como uma vez cada dois meses chega bem para assegurar os meus novos mínimos, que se foda. Sinto-me triste. Tenho saudades de ser pequeno.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Jesus loves you (everybody else thinks you're an asshole)

Tinha ido à FNAC do Chiado, depois de me ter pirado do trabalho uma hora antes da de saída (era dia santo na loja), para ver se arranjava um filmezito para o meu pai, já que era dia dele. Queria um Western (mon papa en raffole...), mas, se possível recente: o género está morto há trinta anos, mas, periodicamente, alguém se esforça por reanimar o cadáver. Uma das últimas tentativas foi do Ed Harris, e chama-se “Appaloosa” (starring o Ed, o Viggo Mortensen – já tinham contracenado na história de violência do Cronenberg –, o Jeremy Irons – outro cronenberguiano – e a Renee Zellwegger). A FNAC desconhecia por inteiro a existência do cavalo em questão (a FNAC e o mundo – não tinha sido exactamente um imperdoável ou uma dança com lobos...)... Shit... Uma súbita inspiração fez-me perguntar se não teriam ali à mãozinha o the proposition (em Portugal mais desconhecido por “Escolha Mortal”). Não é tecnicamente um Western: passa-se na Austrália, tem cangurus e aborígenes em vez de cascavéis e índios, ingleses em vez do 7.º de Cavalaria, mas o espírito é o do velho oeste, e há “extreme knife and gun violence”, segundo o New York Times; extreme knife and gun violence é sempre coisa boa; os actores são excelentes, e o argumento é do Nick Cave. Tinham o filme, e a uns inverosímeis 4,99 euros. Fechámos negócio. Eram quatro e um quarto. O dia estava razoável, e a temperatura perfeita para um brisk walk (derreti um par de quilos nas últimas semanas, mas, com 70, ainda me sinto pesado). Resolvi tomar the long way home, e em direcção ao Campo de Santana, trajecto que guarda uma das melhores (ou seja, piores) subidas da cidade – perto de 200 degraus desde as proximidades do Coliseu até ao citado campo –, para depois seguir até à Estefânia, Saldanha, Marquês, Amoreiras e daí (com uma paragem para entrega do presente e dos cumprimentos protocolares), para casa. Foi por alturas do Hospital da Estefânia que demos de caras um com o outro; ele ainda esboçou uma esquiva; eu ia distraído, e foi o movimento brusco do vulto que caminhava na minha direcção que me fez olhar para ele. Era o Coño – o “Zé” (uso um nome fictício, para lhe preservar o anonimato. Chama-se João. João Marques). Não nos víamos havia uns bons quinze anos. Esse último encontro (acidentalíssimo) tinha sido no Monumental: ele a lanchar com uma rapariga, eu a fazer minutos para um filme qualquer. Tinha-lhe detectado então no olá, no convite a sentar-me para um café e na curta apresentação à namorada, uma notinha de triunfo; ele, o medíocre, ridículo Coño (o meu amigo Miguel tinha-o crismado e o nome pegara) tinha acabado Direito; eu, o brilhante bêbedo, seu ídolo (e paixão recalcada), não. Comportei-me civilizadamente durante os dez ou quinze minutos que passei com o simpático casal. A rapariga (que não era feia) já tinha ouvido muitas histórias picarescas de Coño’s wild years aqui com o Snake (devidamente aparadas de excrescências pouco abonatórias para o João, e retocadas de detalhes que faziam dele, em vez de bombo da festa, um igual, igualdade que o recente canudo abolira: depois de humilhações incontáveis, Coño triunfara). He reminisced sobre os bons tempos, e eu não lhe rectifiquei os relatos; suportei-lhe o tom pouco subtilmente condescendente em que me perguntou o que andava a fazer (ele estava a fazer o estágio, eu a enfrascar-me todas as noites); com benevolente magnanimidade, quando eu fiz menção de pagar o café (alegando que o filme estava prestes a começar), ofereceu-se para mo oferecer. Aceitei, despedi-me da menina (uma Carla ou Sandra, aposto) com um par de beijinhos – era menina de dois beijinhos; quando estendi a mão ao João, contente por lhe ter concedido, sem que me saltasse a tampa, aquela pequena e pública vingança, ele resolveu dizer-me que “tínhamos” de nos encontrar, para pormos a conversa em dia... Um jantar, coisa assim. Qual era o meu número de telefone? Desisti de tentar conter-me. Não, não tínhamos de nos encontrar. Tínhamos acabado de pôr em dia a conversa. Almoços, jantares, encontros marcados, nem pensar. “E está fora de questão aturar telefonemas de um imbecil como tu, Coño”. A Carla ou Sandra ficou de boca aberta; ele ficou lívido; o sorrisinho do último quarto de hora evaporou-se. Virei costas, fui-me embora, e lá ficaram. Quinze anos passados, eu não tinha esquecido o episódio do Monumental; a esquiva desesperada mostrava que ele também não. "Olá, João", disse-lhe eu. Demos um passou-bem. Ele ia a arrastar um saco de viagem (um coisonite) a rebentar pelas costuras. Perguntei-lhe se vinha de viagem; não: eram livros de Direito; “tens escritório aqui?”; não, era técnico jurídico ("assessor") numa empresa de contabilidade pouco adiante. Enquanto falávamos, observei-o bem. Fatinho reles. Suado. Completamente careca. "Tás na mesma", disse-me ele; "Não, estou muito diferente - I’m no longer an asshole. Tu é que estás na mesma...”. A continuação da frase, calei-a, e ele não chegou lá. Sorriu, feliz pela détente, eu também, e assim nos separámos. Boa, Snake.

Bo-o-o-o-ring...

Este blog está tão morto que estou a pensar rebaptizá-lo como oblogdosnail...

domingo, 15 de março de 2009

Grimm and bear it

Reparei que nos últimos tempos só para aqui tinha posto música de maricas... Brutal Truth, Motorhead, AC/DC are the real me. Let there be Rock!

STRS 3

STRS 2

Setting the record straight 1

quarta-feira, 11 de março de 2009

Bravo!

O dia estava lindo, um dia de céu azul como só em Lisboa, azul daquele azul que maravilha os estrangeiros, e que deve ser um efeito óptico da conjugação do rio e do mar (refracção, ou então impedância, enfim, what do I know), e de um Sol que deixa quem passeia fazê-lo frescamente pela sombra ou aquecer-se, se quiser, passando para o sunny side of the street. Os ingleses usam “glorious” para descrever dias assim (também têm rios e mares com cidades à sua beira, os ingleses, mas, a menos que andem por cá, vêem poucos dias como aquele); “glorioso” é o adjectivo certo; para a maioria dos lisboetas e dos turistas, a cidade resumia-se naquela tarde de Sábado às imediações do Tejo. Para mim, era uma oportunidade para andar, andar quilómetros (7 por hora, mínimo); os quilos que me sobrecarregavam exigiam-mo: andar, e andar depressa. Andar depressa, mesmo com pressa, é coisa que os portugueses não sabem fazer; os que têm carro (a maioria) são piores peões que condutores, especialmente podendo gozar o Sol: a solo, arrastam-se, num ziquezague a um curto e lentíssimo passo da imobilidade absoluta; em parelha, trio, ou extended family, comportam-se como moléculas de gás, ocupando por inteiro os passeios, bloqueando quaisquer ruas, independentemente da sua largura; quando lhes rosno o meu “Desculpe, dê-me licença”, olham para mim assarapantados ou indignados, como se eu fosse um psicopata escapado do Júlio de Matos ou um extraterrestre desconhecedor dos mais elementares ditames da civilidade... Os que não têm carro, velhos e velhas que atravancam, inamovíveis, os passeios, em conversas sobre netos e o preço dos medicamentos, esses, então, olham para mim com verdadeiro pasmo; quando finalmente se arrastam do meu caminho, é quase sempre com um “faça favor” azedo, seguido provavelmente (já estou longe) de um colóquio sobre os maus modos da juventude, do respeito que no tempo do Salazar havia pelos "idosos", etc... Bottomline: tinha naquela tarde de evitar as multidões plácidas da beira-rio e a proximidade de centros comerciais, sempre pejada dos carros malparados (como o crédito) de famílias em pleno sobreendividamento – Lisboa, para mim, ficava portanto na direcção oposta à do rio, num trajecto de cerca de 50 minutos rumo a Entrecampos (Estrela, Rato, Marquês, Saldanha), e outros 50 back. Tendo chegado à rotunda de Entrecampos sem novidade, acendi um cigarro, e, sentindo-me já mais magro, espreitei o painel da paragem do 38 (738, na numerologia actual): faltavam 16 minutos para chegar. 16 minutos, mesmo ao fim-de-semana, são 20, ou mais (um minuto-Carris tem 75 segundos, no mínimo, em obediência à relatividade restrita tal como a propôs, sucinta e elegantemente, Einstein). Calculei que conseguiria, descrevendo uma diagonal recortada (qual caravela bordejante) de Entrecampos ao Marquês, apanhá-lo no começo da Braamcamp. Virei por isso para a 5 de Outubro. Estava a passar pelo Ministério da Educação quando resovi ver se, à falta de moedas, tinha uma nota de 5 para me munir de um título de transporte válido, ou se teria de “destrocar” – como deve dizer-se em bom Português – uma das de 20 que sabia ter comigo. E foi no acto de folhear o gordo maço de papel-moeda que ele me surpreendeu, a uma esquina: teria entre 50 e 60 anos (ou, como dizem os pivotos e pivotas, “entre 50 a 60”); estava vestido com dignidade (calças de bombazina castanhas, camisa branca e pullover também castanho, tudo com aspecto usado mas limpo), e usava uma bengala preta com, reparei depois, embutidos de laca encarnados. Dirigiu-se-me com um “desculpe..., senhor” que me fez parar (se me tivesse tratado por “jovem”, adeus). Aproximei-me: “Sim?”; “Posso... pedir-lhe.. um... favor... ?”. Todo ele era tremuras: voz, cabeça, mãos - Parkinson... Refreei a minha impaciência (os minutos-Carris estavam, ainda que com variável lentidão, a escoar-se): “Pedir-mo, pode, mas não sei se posso fazer-lho, porque estou com uma certa pressa”; “Agradeço-lhe... muito... a... sua... gentileza... Nunca... pensei... encontrar-me... nesta... situação... Imagine... que...”. O que eu imaginava era que, àquela velocidade, nem dali a 5 minutos saberia que favor queria o homem, afinal. Um “Por favor, diga-me que favor quer pedir-me” fê-lo chegar to the point, muito devagar: tinha dois autocarros para apanhar, e não tinha os dois euros e oitenta necessários; a doença tornara-o distraído; tinha-se esquecido do passe; havia uma filha que já deveria estar a ficar preocupada, e ali estava eu, senhor, educado, e com não uma, mas duas notas de 5 bem visíveis entre as de 20... Cheguei-me a ele para lhe dar uma delas... E senti-lhe o hálito. Os alcoólicos cheiram a álcool mesmo quando não estão com os copos, e, no caso de velhos bebedolas, esse cheiro é muito peculiar (alguma coisa a ver com o desarranjo do fígado e a deliquescência geral das vísceras), e peculiarmente repugnante (sei-o especialmente bem, por razões que aqui não interessam...). O malandro não parecia estar bêbedo, mas bêbedo era de certeza. O Parkinson era delirium tremens, ou se calhar puro teatro. Dei-lhe a nota, ainda aturdido pela súbita iluminação. “Obrigado... obrigado... Chegar... a... isto... Graças... a... Deus... que...”. Enfim, graças a Deus havia mesmo a jeito um pato constrangido e sem trocos flashing the cash. Teve o desplante adicional de me obrigar (mais dois minutos-minutos) a ajudá-lo a atravessar a rua na direcção da Avenida da República, e a ouvir-lhe a gratidão (outro minuto) e votos de saúde – “Também... já... fui... jovem...” (ah, cabrão!). Lá o deixei, furioso, cheio de vontade de me esconder para ver se não largaria a correr, lépido e sequioso, para a tasca mais próxima... Mas aí, adeus 38. Disparei em direcção ao Marquês. Pelo caminho, pensando melhor, tive de tirar o chapéu ao borrachón. A actuação (cada vez mais me parecia certo que fora de uma actuação que se tratara) tinha sido perfeita; o texto, irrepreensível; a sorte, que ajuda os audazes, tinha estado do seu lado, fornecendo um sucker ideal: se eu só tivesse notas de 20, toda a culpa acumulada que me pesa na consciência de nada teria valido ao mais desvalido dos doentes de Parkinson... Estava a chegar ao começo da Braamcamp quando o 38 passou por mim; ainda consegui, depois de um sprint prodigioso, dar-lhe uma palmada na garupa, mas não comovi o motorista com o meu esforço (são losers driving losers – costumam ser solidários com os utentes, ao contrário dos taxistas, losers que acham que cada cliente nada em dinheiro e só merece ser depenado). O painel da paragem indicava que o 38 seguinte estava a 18 minutos-carris de espaço-tempo; dali até ao meu destino, eu demoraria a pé menos de 20. Cheguei a casa cansado mas contente: a passeata fora dispendiosa em calorias, e os 3 euros e 60 (descontando o bilhete de autocarro poupado) que me tinha custado a comédia também não tinham afinal sido mal empregados...

sábado, 7 de março de 2009

domingo, 1 de março de 2009

Weed (weird) science

http://www.wsweedscience.org/Meeting/photos-2005.asp

How are the mighty fallen...

A foto abaixo é do Guy com o seu "Outstanding achievement award", de 2005. A entidade que o honrou com esse cobiçado prémio foi a Western Society of Weed Science. Outro dos awardees desse ano foi Kelly Luff, da Bayer, que ganhou o troféu de Outstanding weed scientist. I SHIT YOU NOT (o link acima proves it..., sadly). De em pêlo diante de uma multidão frenética e entusiástica a weed scientist premiado... É possível que o próprio GK se aperceba da ironia (o que explicaria o sorriso).

Guy Kyser com roupa

TWR Crawl piss freeze

Medo 2

Tudo isto a propósito de medo: fez sexta passada cinco semanas exactas desde o meu último dia à beira do abismo. Nessa sexta-feira, às quatro da tarde, no departamento, nas Petra, com ninguém senão a Mariola (a rapariga polaca que faz os bonecos - as opposed to me, autor dos dizeres), por companhia, uma tidal wave de tristeza abateu-se sobre mim, e, se não fosse ela (que me acompanhou - a pé, e sob chuva - até à porta da casa dos meus pais), a minha biografia teria acabado ali. Não tenho hoje - como não tinha então - explicação para aquilo. As horas anteriores tinham sido mais que relaxed, tinham sido joyful - Hoffmann estava em Berlim, e o Alexandre tinha-se pisgado à francesa (apropriadamente, já que é francês), logo depois do almoço. Não foi um ataque de pânico, não foi um episódio psicótico. Foi tristeza como nunca tinha sentido, como rezo para que nunca volte a sentir - uma sensação de isolamento absoluto, como se não houvesse no mundo não uma pessoa que gostasse de mim ou de quem eu gostasse, mas como se no mundo não houvesse uma pessoa para além de mim - senti que se naquele momento morresse, it would be not just just fine, but perfect. Se tivesse tido uma arma à mão (ou seja, se aquilo me tivesse acontecido em casa), tenho a certeza - como tive naquele momento - de que não perderia sequer um minuto a escrever uma suicide note (what would the point be, num mundo inteiramente vazio?). O medo que senti de me deixar ir foi suficiente para pedir à Mariola que me desse uma boleia (e que se certificasse de que eu não me chegava à estrada, onde cada carro que passasse seria uma tentação quase irresistível). A letra dos Thin White Rope que transcrevi fui buscá-la por isso - porque ela olhou para mim e viu o pavor nos meus olhos (he works and he smiles - coisa que eu estava a fazer até lhe pedir que me salvasse - but if you look closely, there's still something scared in his eyes...). Quando me despedi dela, já em segurança, a nuvem tinha passado. Todo o episódio não chegou a durar uma hora. Agradeci-lhe (e voltei a fazê-lo na segunda-feira seguinte): nunca tinha sido salvo da morte; o que ela fez foi simply that. Se não me tivesse levado a sério, se tivesse tido pressa em chegar a casa, alguma coisa importante para fazer, se tivesse sido simplesmente não egoísta mas comodista ou desinteressada, não tenho a menor dúvida de que estas linhas nunca teriam sido escritas (com o consequente empobrecimento do género humano). Voltando a essa sexta-feira: o dia estava feio. Eu idem - e gordo, to boot. Aparentemente, isso teria sido bastante para me fazer cortar todos os laços com a vida. É um chavão e um dos poucos que não são verdadeiros: a distância entre a sanidade mental e a loucura é pequena; para a maior parte das pessoas, é grande; para mim, apesar dos meus óbvios desequilíbrios, também; matar-me parece-me hoje (e pareceu-me pouco depois do que se passou) ridiculo. Mas há momentos de perigo, e surgem (pelo menos foi o caso, ali) sem o mais ínfimo pré-aviso. Tinha a Mariola comigo; foi a minha sorte.

TWR - Wire Animals

Vídeo com vocalista em pêlo!

Red Sun

Aqui estão os originais (tocando o red sun). O vocalista (Guy Kyser), reparará quem se der a esse trabalho, está ajaezado com gravata e guitarra, e nada mais. Essa casualness muito iggypópica (e o facto de fazerem música com um travo alternative country & western antes de que alguém descobrisse que existia alternative country & western) pode ter contribuído para que, depois de terem vendido umas largas, larguíssimas, centenas de discos – uma boa dúzia deles aqui ao réptil –, os TWR tenham decidido arranjar real jobs. No caso do enguitarrado e engravatado vocalista, filho de um dos físicos nucleares que criaram a bomba atómica em Los Alamos (true, you can google it) o de professor e investigador de botânica na Universidade de Davis, na Califórnia (muito publicado e lido – é dele “Control of Ailanthus altissima Using Stem Herbicide Application Techniques” - true: you can google it -, o maior best-seller botânico dos últimos anos, que será em breve adaptado ao cinema por Roland Emmerich). Escusado será dizê-lo, mas digo-o na mesma: não eram awesome, nem cool, nem minimamente recomendáveis, eram puro génio, o melhor grupo de rock do Costa Oeste (o que deixa aos SY a Costa Leste, e assim ninguém se zanga) dos anos 80. O real job serve de pretexto ao Guy para fazer aquilo de que realmente gosta - usar gravatas...

Down in the desertski

Medo 1 - Down in the desert

Karl went south and walked out on his hometown

He said it was nowhere, he'd find a new job and stay there

Karl went south like he'd fade if he stayed there

It scared him, he felt claustrophobic and needed some air

Something affected him down in the desert

Karl went south with a sigh of relief

Said he'd be happy with anything different at all

Karl went south but he went through the desert

A Mexican influence followed him home in the fall

Karl came back but he isn't the same

He came very quietly, no one was very surprised

Karl came back and he works and he smiles

But if you look closely there's still something scared in his eyes

Não encontrei um vídeo do down in the desert pelos próprios TWR, de maneira que os TONA (um grupo sérvio… estou em boa companhia, no que toca ao meu amor pelos TWR) terão de servir…

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Uns segundos, e já não sentimos vontade de rir

Para as meninas do (outro) Ovo, eis Snake em toda a sua glória

Cá está, imortalizado em celulóide digital, inevitavelmente guilhotinado para salvaguarda da sua privacidade, o autor destas linhas. Apreciem-se o volume e a definição musculares, o impecável gosto sartorial, a harmonia da composição, as mãos entregues aos dois grandes prazeres na vida do ofídio - o fumo e a masturbação...

I made this (put me out of my misery)

“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá para sempre”. Triunfo da vida sobre a morte, da esperança sobre o medo… Eis o milagre de Cristo, milagre que a cada Páscoa sentimos dar-se em nós: examinamos a consciência, experimentamos a contrição, aceitamos as austeridades da Quaresma, entregamo-nos a uma vida mais próxima do ideal a que aspiramos, o da mensagem de Cristo. Não tardaremos a viver, Sexta-feira Santa, a Paixão; ansiamos por Domingo de Páscoa, pelo júbilo da esperança renovada…

Pelo mundo fora, de Roma a Fátima, da Etiópia ao Líbano, da Arménia ao México, da China à Austrália, milhões de pessoas reflectem por estes dias no dogma fundamental da sua Fé – o de que, três dias depois de ter sofrido na cruz a morte, Jesus Cristo ressuscitou, abrindo à Humanidade, com o rolar da pedra do Santo Sepulcro, as portas da Salvação na vida eterna. Na base desta crença que se sobrepõe a tudo o que – essencial ou de pormenor – distingue as muitas correntes do Cristianismo, está um facto histórico: o de que, algures entre os anos 26 e 36 da nossa era, um homem que se proclamava filho de Deus, Messias, e conquistara com a sua subversiva mensagem de fraternidade e esperança uma multidão de seguidores, foi condenado por blasfémia e por desrespeito às autoridades romanas, e crucificado em Jerusalém durante a Páscoa. Ponhamos de lado os livros de História, voltemos os olhos para a Bíblia. Diz-nos São Lucas que, à pergunta do tribunal judaico – “És tu o Messias, o filho de Deus bendito?” – Jesus deu a resposta que sabia equivaler à morte. Inquirido por Pilatos, o prefeito romano da Judeia, não lhe deixou alternativa: sim, era rei (de um reino que não era daquele mundo); deprezara a possibilidade que Pilatos lhe oferecera de ter a vida salva… Era uma ameaça tanto para os sumo-sacerdotes do Sinédrio como para Tibério, imperador de uma Roma que viria a tornar-se sinónima de Cristianismo… A morte era o seu destino, e do modo mais infamante: na cruz, ladeado por ladrões… Que assim fosse. Era esse o desígnio, o propósito último, a chave que faria a humanidade compreender o sentido dessa verdade que Pilatos famosamente ignorava… Filho de Deus, Messias, Jesus oferecia a quem o quisesse, homem ou mulher, poderoso ou humilde, livre ou escravo, o mais cobiçado dos tesouros, o bem supremo – a vida eterna sob o olhar de Deus. Não era subversiva, era revolucionária, a mensagem de Cristo. É em memória desses três dias que abalaram o mundo que se enchem do rumor das preces e do fervor da crença, na comunhão com o Salvador, templos pelo planeta inteiro. E, nos corações de milhões de fiéis, nenhuma súplica é por estes dias conturbados mais ardente que a súplica pela Paz...

Foram essa súplica e a esperança que na Páscoa sentimos renascer em nós e à nossa volta que inspiraram a edição 2009 do Ovo Anual em Porcelana de Edições Petra. Apresento-lhe o projecto original do nosso bem conhecido Egypton Navarro para o belo Ovo deste ano: num céu azul recamado de estrelas, voa um bando de pombas brancas – símbolo universal dessa Paz por que tanto ansiamos… O seu exemplar ser-lhe-á remetido dentro de três semanas, salvo indicação em contrário da sua parte. O preço é de 60 €, liquidável, tal como de costume, em três pagamentos mensais de 20 €, debitados directamente no seu cartão VISA. Aplica-se, como sempre, a nossa garantia de quinze dias de satisfação-ou-recolha.

Desejo-lhe, a si, caro amigo, e aos seus, uma Santa e muito feliz Páscoa.

Cordialmente,

Ernst Hoffmann

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

The Birthday Party: Swampland

The Birthday Party: memória descritiva

Animação garantida para qualquer festa. Um slow romântico para os os casalinhos apaixonados, e um blues com muito shake para pôr tudo a dançar. Enjoy!

The Birthday Party Jenifer's Veil

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

No pussy Blues

Comemorei há algumas semanas um aniversário histórico – dez anos de celibato. Dez anos de abstinência sexual (a masturbação não conta). Dez anos sem ter relações sexuais. Sem foder, para utilizar o termo médico. Dez anos – um quarto do tempo que conto de vida, e certamente os mais longos dez anos de uma vida que me parece já bem longa. Somando a essa readquirida virgindade os dezasseis da original, vou em vinte e seis (hoje deu-me para o por extenso) anos a seco (a masturbação não conta). Faço esta revelação sem vergonha, sem embaraço; sem (pun intended) pudor. Para a meia-dúzia de pessoas que chegar a ler estas linhas, a revelação não é revelação nenhuma. A minha castidade é desde há muito um dos meus (muitos) segredos de Polichinelo. Mas nem por isso deixa de ser intrigante. Sou a pessoa mais obcecada com o seu aspecto físico que conheço. Um quilo a mais (e qualquer quilo acima dos sessenta e oito está a mais – neste momento peso setenta e dois), e começo a trepar pelas paredes (tirem as vossas concusões); dois dias sem fazer ginástica, e o meu mundo desmorona-se; espio as rugas que se vão cavando em torno dos meus olhos e na minha testa com ódio; desbasto (com uma pinça, dolorosamente) sobrancelhas que parecem determinadas a cunhalizar-me; arranco – com a mesma pinça, ainda mais dolorosamente – os pêlos que em cada vez maior número me brotam das profundezas do nariz e me orlam cada vez mais visivelmente as orelhas... É difícil imaginar mais avassaladora vaidade, ou mais inútil – tanto tempo e tanto esforço despendidos, para quê? Para confirmar, em cada vidro ou espelho que se me atravessa no caminho, que I look as good as I ever did ou as good as I possibly could (as limitações intrínsecas – estatura exasperantemente mediana, estrutura óssea pouco harmoniosa, assimetria facial pronunciada – estão para além do meu controlo)? Tanto por tão pouco... And yet, o mais intrigante (para mim) é a facilidade com que me privo (aceitemos, for the sake of argument, que pôr fim à travessia do deserto só depende da minha vontade), de coisas que para a maioria das pessoas são o alfa e o ómega da existência – amor, intimidade, sexo... Intrigante e inquietante, já que me parece ser essa renitência em aceitar a proximidade física com outras pessoas (gender irrelevant) o elemento que mais fundamente me define. Quando era miúdo, sofri – como a maioria dos miúdos – o terror de morrer sem chegar experimentar o sexo e os seus prometidos deleites. O evento funesto não de verificou: fui salvo desse destino por uma rapariga holandesa muito bonita que, por razões que a razão desconhece, me achou – pré-músculos, pré-magreza, estatura mediana, desarmonia óssea e assimetria facial notwithstanding – irresistível. A essa pioneira sucederam outras raparigas, de beleza ou fealdade variáveis mas nunca extremas (não muitas: o cômputo total não ultrapassa a dupla dúzia), que os meus dúbios encantos (potenciados por doses imensas de álcool) atraíram ao meu desolado covil. Uma década depois da última colisão, dou por mim imune ao medo de morrer em odor de santidade, sem perceber o porquê da mudança. Quando, no início deste ano, tive o meu meltdown, um dos meus pavores foi o de vir a emergir das profundezas do inferno para descobrir que tinha passado quarenta anos in the closet – dar por mim maricas. Não aconteceu (alívio), e essa certeza coincidiu com a clara sensação de que a próxima década seria de triunfal regresso ao activo. Experimentei uma semana de exuberante hipersensibilidade aos atributos de todas as raparigas que me passavam sob os olhos: a tesão era tanta (e tão inconveniente) que me senti obrigado a suspender o meu no-underwear pledge, e devo ter batido mais punhetas nesses seis ou sete dias que nos seis ou sete meses anteriores... Hélas (ou não – e esse é o problema), voltei entretanto ao normal – a estaca zero em todos os campos próxima ou distantemente relacionados com sexo. Há-de ter sido a crise de meia-idade mais curta e menos produtiva da história. Todos os sinais da minha vaidade voltaram, tão exigentes em tempo e esforço e tão absurdos como antes. Emocionalmente (hesitei antes de escrever a palavra), reencontrei o meu ponto de equilíbrio – umas fracções de grau acima do zero absoluto. Remiguelizei-me, voltei a ser eu, sem crises nem sobressaltos, engraçado, inteligente, generoso, encantador, gélido (ou, mais propriamente, frígido. Mas custa-me esta sensação inelutável de estar a privar-me (ou a permitir-me ser privado) do que realmente conta...

sábado, 14 de fevereiro de 2009

E, para demonstrar que nem tudo o que para aqui escorre é ficção, eis dois poderosíssimos elementos de prova - Garbageman, original demolidor, e Fever, versão arrebatadora e elogio fúnebre supremo e supremamente comovente ao génio e à danada mas enorme alma (mahatma) de Lux Interior

P.S.: o Expresso, sempre eructante de informação inútil, fez-me o favor de me pôr a par do nome autêntico do artista falecido, nome que por respeito me abstenho de aqui reproduzir. Lux para sempre!

Fever

Garbage Man

Fever

Acabo de descobrir, folheando bocejante o bocejante “Actual” do Expresso (o caderno formerly known as “Cartaz”), que morreu (com a inverosímil idade de 62 anos) o grande Lux Interior, vocalista (ou cantor, para quem tenha, como eu, uma noção ampla, amplíssima, do conceito de “cantar”) dos Cramps. Estilisticamente, acaba de me dizer a wikipedia, os Cramps faziam (frequentemente em simultâneo e delirante caos) garage punk, punk, trash rock, rockabilly e, acima de tudo, psychobilly (“Psychobilly is a genre of rock music that mixes elements of punk rock, rockabilly, and other genres. It is often characterized by lyrical references to science fiction, horror and exploitation films, violence, lurid sexuality, and other topics generally considered taboo, though often presented in a comedic or tongue-in-cheek fashion”, informa a wikipedia ), o estilo em que mais longe o seu génio (essencialmente o do grande Lux) atingiu o zénite. Tenho meia-dúzia de álbuns deles (incluindo um par de compilações), material mais que suficiente para conhecer o melhor do muito (muitíssimo – mais prolíficos, ou mais prolixos, só para aí os Fall) que produziram ao longo de uma carreira (termo a tomar também na mais vasta das acepções) de mais de trinta anos. Socorrendo-me da definição de “psychobilly”que há pouco surripiei, é-me fácil demonstrar como se lhe adequa o corpus crampi – “My Daddy Drives a UFO” (sci-fi); “Human Fly”; “I Was a Teenage Werewolf”; “Zombie Dance” (horror); “Can Your Pussy Do the Dog”; “You’ve Got Good Taste”; “Hot Pool of Womanneed” (exploitation, violence, lurid sexuality). De “other topics considered taboo” também não há escassez no cânone crâmpico, desde o canibalismo à coprofagia, do incesto ao parricídio. Em boa verdade, o tabu era o território deles. E se também é verdade da boa que o seu viscoso rasto pelos domínios do interdito tresandava a gozo, não o é menos que, no seu melhor (1979 – 1983), sob o riso e as piadas de quase sempre péssimo gosto, havia uma corrente muito forte e perturbadora de ameaça, medo e demência que os aproximava muito mais dos Birthday Party/early Nick Cave (ou, mais recentes, os Gallon Drunk) que de palhaços como os Reverend Horton Heat ou Zombina and the Skeletones (to name but two, que a lista de assholes whose dream is to be the next Cramps é infindável). And man, could they rock! Não que soubessem tocar (ou cantar, como deve ter ficado claro); a risível incompetência técnica,o absoluto desconhecimento dos instrumentos, o total desprezo pelas noções de harmonia, ritmo, melodia, tom ou quaisquer outras que integrem o mais rudimentar currículo conservatorial, pelo menos nos primeiros anos, eram não só mais que manifestos, como também – nesse aspecto, de acordo com a mais rigorista ética garage-trash-punk – orgulhosamente ostentados. That was not the point. E qual era o point? Bom, antes de mais, sexo, em doses maciças, cavalares, exposto de modo insuperavelmente boçal e grosseiro, sob todas as formas e em todas as configurações – da punheta ao sadomasoquismo à orgia the-more-the-merrier; depois, a celebração do amor ilimitado e genuíno pela trash-culture americana – dos hambúrgueres e drive-ins, carros com barbatanas e gajas com mamas enormes, aos filmes sub-série-Z, literatura pulp, revistas porno, freak e peepshows… enfim, se era inteiramente alheio à mais remota ideia de bom-gosto, bom-senso, inteligência, relevância social ou política; se suava, arfava, fumegava, fodia, fedia, desgostava, escandalizava, repugnava ou induzia vómitos, então era temática do domínio da crampologia. Eram os John Waters do rock (com a diferença de que o John Waters sucks – cock and gas). Eram também um dos melhores grupos da história do rock: três das suas “canções” originais estão entre as mais fenomenais que alguma vez ouvi ou ouvirei: TV Set, Garbageman, Thee Most Exalted Potentate of Love – e isto significa que as ponho a par do que de melhor fizeram os velvet Underground, os Joy Division ou os Sonic Youth. E depois, há as versões – Strychnine, Tear It Up, Fever, superiores a todas as outras que conheço (incluindo o Fever clássico da Peggy Lee – that’s how good they were). A partir de 1983 (ano do Smell of Female, ao vivo, fabuloso, e do Off the Bone – compilação com o absolute best, para quem ache que one dose of the cramps is enough), as coisas entraram na rotina. O Date With Elvis ainda quase makes the grade, mas o resto (ainda que invariavelmente haja uma ou outra jóia entre o pechisbeque) é refugo, feito para pagar o spandex, as tintas para o cabelo e o verniz para as unhas, alguma comida e quantidades industriais de droga. O bom do Lux não deixou um cadáver bonito, mas só porque não morreu novo (os Cramps clássicos tinham todos, senão beleza – estou a pensar no Bryan Gregory e no Nick Knox –, certamente sub-z-movie star looks, no caso do vocalista tema deste texto já longo; quanto à guitarist-cum-dominatrix Poison Ivy, era simplesmente de pasmo), e não morreu novo porque nada é mais americanamente trashy que uma puta gasta e desbocada. Possa a tua alma, Lux, contorcer-se eternamente de prazer nas chamas do Inferno.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Lebowski

Tenho em casa, desde há duas semanas, uma impressora. É um belo objecto (um paralelepípedo quase cúbico) em plástico negro mate que, como o tapete do Lebowski, really ties the room together. Estou muito satisfeito com a aquisição: não só custou (instalação incluída) uns míseros/meros 150 euros, como, tendo eu dispensado a emissão da correspondente factura, fiquei em contrapartida dispensado de esportular outros 30, correspondentes ao que julgo ser um imposto chamado IVA. A “máquina”, como o gajo que ma instalou insistia em chamá-la, é a laser, e imprime fotografias com excelente qualidade. Só ainda não percebi bem para que me vai servir. Já fiz, a pedido da minha Mutti (os seus desejos são ordens), algumas cópias de fotos da minha sobrinha Mariana. A crítica foi unanimemente elogiosa. Já imprimi uma lista de livros que tenciono (money and time permitting), respectivamente comprar e ler. Devo ter imprimido umas dez páginas, no total. Não levando em linha de conta o custo do papel, cada página custou-me até agora 15 euros. Sou um teso que não tem onde cair morto: 15 euros por página is a little too rich for my blood. Por isso, ontem, lembrei-me de que poderia tentar começar a amortizar a máquina com a impressão de pornografia. Imagens de gajas boas, na Internet, não faltam. Da resma de folhas que tenho em casa (uma resma = 480 folhas) sobram-me ainda 470. São muitas gajas boas, muitas punhetas potenciais à espera de implementação. O problema está nas fotografias que encontro. A primeira candidata de que me lembrei foi a Jessica Biel. É uma artista de grande talento, e gosto muito de vê-la trabalhar. Escrevendo “jessica biel” no google imagens, não é preciso ir além da primeira fornada para encontrar pano para muitas mangas... But there’s (pun intended) a rub: impressas as fotos, criado um ambiente de trabalho ergonomicamente adequado (um panóptico, digamos), esbarro na dúvida tremenda: porque é que uma rapariga assim haveria de contorcer-se langorosamente com os olhos cintilantes de desejo pousados em mim? A inteligência ou o bom-senso (you choose which) dizem-me que as probabilidades de isso alguma vez acontecer são ténues, senão ínfimas. Ain’t gonna happen. E a punhetinha tão ansiada não chega a ser implementada. E não adianta alterar os parâmetros da procura: brancos e negros, os corpos que vêm dar à minha costa (por razões misteriosas, os fotógrafos têm uma marcada preferência por praias) são invariavelmente perfeitos, luzidios de água salgada e óleos perfumados, coleantes em marés baixas, reclinados sobre rochas quentes e polidas; nos rostos de impossível simetria, o desejo é murmurado por lábios entreabertos mostrando dentes de impecável brancura, o prazer prometido por olhos semicerrados no antegozo de longos enlaces que só orgasmos de perfeita sincronia quebrarão. Deslocado, só poor old me. É a maldição do masturbador inteligente... Vou ter de ficar à espera que algum nerd inspirado crie o site plausibleporn.com. Já gostei mais do paralelepípedo quase cúbico negro mate que really ties my room together...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

O Aviador

O “piloto do Hudson” – o herói que conseguiu pousar o seu avião nas águas do rio Hudson, salvando assim 150 pessoas de um destino pior que a morte, não desaparece das manchetes da imprensa americana:
“Weeks after starring in his own story of bravery and heroism, the pilot who safely ditched his jetliner in the Hudson River received a standing ovation Saturday from the audience at a Broadway performance of “South Pacific”.
At the end of the classic revival, the show’s stars introduced Capt. Chesley “Sully” Sullenberger as the pilot who set down the disabled plane within reach of rescue boats last month, saving the lives of all 155 people. A spotlight was trained on Sullenberger in the audience, and the crowd stood, cheered and applauded. The pilot’s wife, Lorrie Sullenberger, began wiping tears from her face. He hugged her, then turned back to the crowd and waved as the cheers grew still louder. The 58-year-old pilot, his wife and their two daughters went backstage after the show and met the cast of the Rodgers and Hammerstein musical, which tells of the romances and heroics of a group of American aviators, nurses and sailors stationed far from home during World War II.
It was an appropriate choice for Sullenberger, who was named best aviator in his Air Force Academy class and served in the military from 1973 to 1980. He flew F-4 Phantom II fighter planes and served as a flight leader in Europe and the Pacific.”
Eu, se fosse o Sully, tinha cuidado. Tanto interesse na sua vida, na sua família, na sua carreira... Tantos jornalistas a “investigarem”, tantos amigos e conhecidos a “testemunharem”... Não hão-de tardar a biografia autorizada, o movie of the week, talvez o blockbuster com o Harrison Ford (que já pilotou o Air Force 1) aos comandos... 58 anos, ainda casado com a noiva original, duas filhas, uma folha de serviços militar que não se limita a ser sem reparo, e um registo na aviação civil agora coroado com uma arriagem perfeita... Ó Sully, quem julgas tu que enganas? Eras o melhor pilotinho da academia e gostas de musicals? Tens duas filhas? De qual gostas mais? E a tua Lorrie, aposto que a chorar está ela habituada... Já agora, tens-te lembrado de declarar os teus rendimentos? Seriamente, já há-de haver quem se pergunte se alguém pode ser imaculado. Nascido por volta de 1950, o nosso Sully tinha 30 anos quando pegou nos comandos de um avião de passageiros: hospedeiras e aviadores, mile-high club... Não há um marido ou colega ciumento, uma co-worker despeitada ou traumatizada por assédios importunos? Para onde voou o Sully? Paraísos fiscais nas Caraíbas, ou então Colômbia, Bolívia, México? O mundo gosta de heróis, mas o que saboreia realmente é o espectáculo que dão quando estão tombados na sarjeta. Até o nome “sully – to make soiled or tarnished, to defile”, prenuncia a queda... Não dou ao herói do Hudson mais que uns meses até a lama começar a salpicar-lhe o nome; ainda o verei – e não sentirei senão pena, enquanto murmuro “I told you so”, claro – a pedir desculpa ao mundo por não ser perfeito...

Yerself is steam

Bem sei que ninguém quer saber, mas pu-la aqui na mesma. O grupo – a banda – dava pelo nome de Mercury Rev (um foguetão Mercury em pleno lift-off, ou então um motor fora-de-borda Mercury em plena aceleração... whatever). Words fail me. Estar à beira-mar em Phuket a ver a rebentação no dia 26 de Dezembro de dois mil e não sei quantos deve ter sido parecido. Listen at your peril. A ideia veio-me do blast from the past com que começou hoje o meu dia – um friend request de uma rapariga que não vejo há dez anos mas que nunca pude esquecer (o adjectivo “unforgettable” foi criado with her in mind). It’s not time for these fears of mine, e depois o mundo explode, e quem não sentir um arrepio na espinha e um desejo irresistível de se lançar para o mosh pit não tem alma... Em toda a sua incandescente glória, lovingly dedicated to Barbara, eis “Chasing a Bee”.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Todos os nomes

Uma coisa que eu acho que é importante e não está bem é os nomes. Há montes de pessoas que os nomes são iguais. Só Anas e Sandras conheço eu para para cima de umas vinte, Anas Margaridas, Anas Cristinas, Anas Marias (e Sandras igual). Só aqui no trabalho hão-de haver algumas seis ou sete Anas. Quer dizer, se fizessem um filme só devia de ter uma Ana e uma Sandra; se houvesse duas que o nome fosse igual, era logo vai haver uma confusão qualquer com estas gajas. Eu sou Rui Fernando, mas toda a gente me chama Nando, fora no trabalho, que sou Rui. Da família, só a minha esposa é que não, é mesmo Fernando e não gosta nem um bocadinho de Nando. E um amigo meu que é Luís e a mãe e a irmã mais nova são as duas Idalina, e a irmã mais velha é Deolinda e tem uma filha que é a sobrinha dele e também é Idalina e o filho, que eu fui o padrinho, também é Rui. Tenho outro amigo meu, que é o Paulo, que antes de se casar com uma que é Carla, teve namoro com três que eram todas Carla. E por aí afora. Nos filmes não é assim e nos livros também não pode ser, porque senão ninguém percebia nada. Tem-se que mudar os nomes, senão é uma confusão. Outra coisa importante é os palavrões. O meu pai era humilde, mas não gostava de palavrões, e a minha velha então, alto lá, quando eu alçava a grimpa era logo. O meu pai nunca me levantou a mão mas também não era preciso, mas digo palavrões. Quando comecei aqui no trabalho, as pessoas só diziam palavrões quando estavam só gajos, ou só gajas, por exemplo, ou então em Inglês (eu falo um bocadinho). Eu dei a volta a isso, tipo tudo a tomar café no primeiro andar (que depois acabou, porque o patrão afinava, mas também não se podia fumar, portanto por mim...) e eu vá de contar uma anedota mais pró picante, mas sem exagerar demais, só na reinação que eu não gosto de ofender ninguém. E os outros era logo a avacalhar. Mas voltando aos palavrões é mesmo assim que as pessoas falam (e o patrão tenho a certeza que é igual, só que à nossa frente é que não). Se o Miguel Esteves Cardoso, que tem estudos (eu não tenho derivado que tive de começar a trabalhar quando o meu pai faleceu, mas a quase que acabei o liceu) pode fazer um livro que é O Amor é Fodido eu também posso mandar umas bojardas. E em relação às gajas igual e aos paneleiros e aos pretos. Há um no DN que é o Manuel Ribeiro que é só cartas de gajas a dizer mal, mas gostam e, as que dizem mal lêem, senão como é que sabiam. O que eu quero dizer é que há porradas de mulheres que escrevem livros que as mulheres lêem. A Rita Ferro, a Margarida Rebelo Pinto, a esposa do Freitas do Amaral e uma que é a Bobone e mais uma porrada delas fartam-se de fazer papel. O que eu acho é que se funciona com mulheres também funciona com homens. Eu sei que os paneleiros e as mulheres é que lêem mais livros, por isso um gajo que quiser escrever um livro como os que as gajas lêem mas para os homens também não pode abusar demais, porque senão depois ninguém compra. Eu achava que escrever era difícil, mas até nem está a ser e acho que o meu livro até agora é bom. Um aqui que tem estudos, para escrever uma cagada dum folheto é só enciclopédias e dicionários e internet e o diabo a quatro e na volta o patrão não gosta, mas também com o patrão é sempre assim. As pessoas é que pensam que escrever é difícil mas é porque nunca experimentaram... Mas há livros que ninguém compra fora intelectuais, ou intelectuais da treta, mas nem me acredito que os lêem. Há livros que depois são feitos filmes, tipo a Firma ou o Cliente ou o Advogado do Diabo que eu não li os livros mas vi os filmes e o escritor é o mesmo mas como são todos sobre advogados, ele teve trabalho para um e ficou com a papa feita para os outros fora a história que é diferente. E o Stephen King igual, nem me acredito que tem trabalho fora a história, que é a vantagem do sobrenatural. Eu também não estou para me matar, que já chega ter que escrever e não gosto de sobrenatural nem de ficção científica (que mesmo assim tem-se que ter uma grande imaginação, lá isso também não vou negar). Li os Lusíadas, que não gostei mas lá que é bem escrito é. Os Maias do Eça de Queiroz gostei. E li mais uma catrefada deles (as Viagens na Minha Terra, e outro que era a Família Inglesa e mais outros que agora não me lembro, mas acho que o que gostei mais ainda é os Maias). E em inglês também li alguns. Portanto até acho que li mais livros que muita gente, só que não sou é nenhum intelectual. O dos folhetos é só palavras caras e vírgulas, tem a mania das vírgulas, mas se o patrão não espirra também não sou eu que vou dizer nada. Mas lá português sei (e inglês), só que não é assim que as pessoas falam, fora intelectuais e mesmo assim é cada uma que até dói, mas prontos.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Se te queres matar, porque não te queres matar?

Os dias iam passando, que é o que fazem os dias... O Miguel – o outro, o meu amigo (um aparte: na ficção, quase nunca há duas personagens com o mesmo nome, a menos que seja para tarde ou cedo gerar um engano rico em consequências dramáticas. Na vida real, por outro lado, o número de nomes distribuídos parece ridiculamente pequeno: uns bons 50% das raparigas que conheço chamam-se Ana; Miguéis, somos mais que as mães... olha, rimou) passou por minha casa e deixou-me, a conselho da irmã, médica (outra das raras não-Anas), uma caixa de comprimidos de valeriana (500mg) de comprovados efeitos ansiolíticos. Atirei-me a eles como um lobo; funcionavam. Comecei a dormir outra vez, a conseguir sair de casa sem ter de me apoiar em paredes, corrimões, sinais de trânsito e carros estacionados para não desmaiar. No Dia da Fruta, o Sr. Jorge achava-me melhor cara (mas continuava a deitar-me olhares furtivos para ter a certeza de que eu não lhe caía redondo no estabelecimento); no Minipreço, já não metia conversa com os clientes e as meninas da caixa; na rua, já não falava sozinho em voz alta (pelo menos era o que me parecia). A coisa compunha-se. Fui ao Maló para a primeira de muitas e financeiramente ruinosas consultas. Comportei-me exemplarmente. Fui trabalhar pela primeira vez em quase três semanas. O Sr. Hoffmann manifestou satisfação pela minha convalescença. Fiquei comovido, mas não chorei – nada mau. Nesse mesmo dia (8 de janeiro), decidi-me enfim a folhear a Internet, para poder pôr um nome na lápide do inimigo vencido. Podia ter-se tratado de uma de duas coisas, parecia: ou tinha tido uma crise de pânico ou sofria de doença bipolar. A segunda hipótese tinha um poor outcome, pelo menos sem tratamento médico pesado e doses cavalares de lítio. Optei pelo mal menor – ataques de pânico: what ifs, quase desmaios, palpitações... batia certo. A valeriana, no entanto, era afinal um placebo, e deixou imediatamente de produzir qualquer efeito; o passeio que tentei dar no dia seguinte (também a conselho da irmã do Miguel, que tinha posto a hipótese de que o problema fosse a chamada “seasonal affective disorder” – acrónimo “SAD” – e tinha sugerido banhos de Sol à beira do tejo) foi desastroso. Tinha passado do pânico ao terror. Os diques tinham cedido de vez, e a torrente dos medos tinha arrasado tudo o que se atravessara no seu caminho: depois de ter por milagre chegado ao Terreiro do Paço, precisei de apanhar um táxi para voltar a casa. A contemplação do rio (“beautiful but boring”, como dizia o outro) tinha gerado uma ideia fixa – a de como deveria ser bom estar morto. Paz e sossego. Nem medo, nem desejo. A Wikipedia chama ao fenómeno “suicidal ideation”: é uma bela expressão. No meu caso, era um regresso ao passado: entre os 18 e os 21 ou 22 anos, eu não tinha feito outra coisa; a diferença era que agora, tendo os meus pais em Lisboa, seria fácil, com um verdadeiro arsenal à minha disposição a 5o metros de casa (o meu pai coleccionou armas durante muito tempo, e tem-nas às dezenas). Meter uma bala na câmara, enfiar o cano na boca - a experiência é desagradável: o metal é frio, sabe a óleo e cria uma sensação semelhante à que se tem quando se toca com a língua no pólo de uma pilha, mas a fracção de segundo entre o premir do gatilho e o nada não deixa tempo para arrependimentos - nada de what ifs... Perfect. Quem decidisse ficar por cá que se amanhasse.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Graduellement, pendant que durait cette épreuve d’humiliation, je sentais mon amour-propre, déjà prêt à me quitter, s’estomper encore davantage, et puis me lâcher, m’abandonner tout à fait, pour ainsi dire officiellement. On a beau dire, c’est un moment bien agréable.

Gradualmente, enquanto durava aquela prova de humilhação, eu sentia o meu amor-próprio, já pronto a deixar-me, esbater-se ainda mais, e depois largar-me, abandonar-me por completo, digamos assim, oficialmente. Digam o que disserem, é um momento bem agradável.

Céline, Viagem ao Fim da Noite



É verdade, amigas e amigos. Pouco há que se compare à ablação – cirúrgica ou em resultado de traumatismo – do amor-próprio (agora diz-se auto-estima... também serve) para libertar the subject (Marachuk, John J.) das peias, estorvos e embaraços que as convenções sobre o que é ou não socialmente (e, se calhar, moralmente) aceitável lhe (ao subject) impunham. Mais umas semanas sob a chuva ácida do Freeport, e o Sócrates abandonará quaisquer pretensões de seriedade e transformar-se-á (em obediência ao imperativo Nietzschiano – porra, este custou!), naquilo que é – um rabetolas vaidoso e corrupto. A travessia do Rubicão pode fazer-se por muitos motivos, mas once you’re across, there’s no going back. Há um fim da noite à espera de todos aqueles que o desespero força a dar o primeiro passo (mas o ver nascer o Sol não é garantido a ninguém). A minha viagem, comecei-a há mês e meio – dia 16 de Dezembro to be precise – a arder em febre graças ao H3-qualquer-coisa que a minha Mãe tinha feito o favor de me trazer da Serra da Estrela. A partir daí, desabou tudo (ou seja, colapsou) – deixei de conseguir comer ou fazer ginástica, deixei de conseguir trabalhar, deixei de conseguir impedir-me de passar a meia-dúzia de horas diárias em que conseguia arrancar-me da cama sem a passar (a meia-dúzia) a limpar a casa e a mudar a roupa da cama como um maníaco. Deixei, em suma, de ser o Miguel generoso e enérgico que a vizinhança aprendeu nos últimos anos a admirar e (ouso dizê-lo), amar – o S. Miguel à Lapa – para me transformar num animal doente, ranhoso, suado, cambaleante, de termómetro permanentemente enfiado na boca, coberto de andrajos mal-cheirosos e incapaz de encadear de forma coerente duas ideias simples... Ah, a miséria que é o corpo, com as suas excreções, secreções, exsudações, exigências ridículas de sustento e de repouso, com a sua desavergonhada chantagem sobre a mente – trata de mim ou morre comigo. Um mês depois, o corpo estava mais ou menos reparado – o material tem sempre razão, e a medicina tem ainda limitações que envergonham o engenho humano, Marachuk, John J. died during the procedure... estava funcional, nada mal – mas o meu cérebro estava em plena tempestade, prestes a soçobrar definitivamente nos abismos da loucura. Falava sozinho permanentemente (ao ponto de ficar rouco); passava horas a fazer listas mentais dos medos que me paralisavam – aquilo que os psiquiataras chamam “what if scenarios”: vou a andar na rua... alguém me pede um cigarro... me pergunta como se vai para as Amoreiras... um carro swerves off the road e atropela-me (o que tinha acontecido umas semanas antes)... a fachada do prédio em demolição cai-me em cima... escorrego na puta da calçada portuguesa e dou de vez cabo do meu bum shoulder (o esquerdo)... fico atrás de uma rapariga bonita na fila do Pingo Doce e venho-me... Fico atrás de um gajo bonito na bicha do Minipreço e venho-me... Encontro faces from the past, gente que me conhece os segredos (too many secrets – como no sneakers – mau filme, good line), e sou desmascarado... Enfim, you get the idea... (continua, mas não hoje)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Is it safe?

Tinha passado mais de um ano desde que o Sr. Hoffmann definira o ‘concepte’ (pronunciar à portuguesa) para a colecção: o chá, o seu cerimonial, impregnados da espiritualidade, da serenidade, da sabedoria orientais, etc. Confúcio meets a Arte da Guerra (porque a coisa também metia piratas, grandes apreciadores de chazinho – bebido da melhor porcelana com o mindinho bem esticado). Eu tinha ‘pesquisado’ (folheara “O Ritual do Chá” e três ou cartapácios sobre porcelana) e escrito; o Egypton tinha desenhado as maquetes, sempre atento a que tivessem leitura e respirassem. O César fizera os ‘shootings’. Ao longo de muitas semanas, o Sr. Hoffmann fora recebendo os frutos do nosso trabalho; tinha reunido separadamente com cada um dos envolvidos; tinha convocado a ‘equipa’ para ‘briefings’, perorado longamente sobre assuntos elevados e decidido secamente, cortantemente, em questões de lana caprina, fiel à sua divisa – be practical. Tinha dado ordens e contra-ordens, mudado de opinião vezes sem conta; por fim, o dificílimo parto terminara: uma bela manhã, o Alexandre comunicou-nos que o ‘lançamento’ estava por horas. O dia passou, mas nada. Depois passou a semana. Concluí que nos céus, os astros não tinham assumido a configuração propícia; tinha passado o momento psicológico. Lançamento abortado. Meses depois, às cinco para as cinco da tarde de uma Quinta-feira, estava eu a arrumar a minha tralha para ir para casa, a Sandra (a secretária do Sr. Hoffmann) telefonou-me: ‘o patrão’ queria dar-me um briefing... Subi, com a morte na alma, até ao 5.º andar. Passei pela Sandra, que, entre duas baforadas e com um sorrisinho trocista a mostrar os dentes estragados, me disse que entrasse. Dei com o Sr. Hoffmann confortavelmente reclinado, de perna traçada, afastado da mesa onde se acotovelavam pilhas de livros sobre porcelana e louça da Companhia das Índias, catálogos de leilões, folhetos antigos e as peças da colecção; começou por me dizer que os meus textos estavam bons (mau sinal), e que se tratava apenas de fazer o ‘fine tuning’ (sinal péssimo). Um pouco mais de espiritualidade oriental, mais epopeia portuguesa no Oriente e encontro de mentalidades, culturas e religiões… E mais piratas. ‘Parra os pirratas, porrcelana erra urrô’. E toda a gente gosta de piratas – românticos, audaciosos. Eu repeti o que já lhe tinha dito muitas vezes – em matéria de pirataria , os portugueses (como os espanhóis) eram os patos... ‘O Miguel sabe isso, mas a maiorria das pêssoas náo’. Good point. Queria também a história de D. Catarina de Bragança, que introduzira o hábito do chá em Inglaterra, e mais passado glorioso e aventureiro das quinas... Talvez Fernão Mendes Pinto (‘Pode você lêarr a “Perregrinaçáo”, e encontrrarr as referrências à pôrrcelana?’)… E, já agora, ‘en filigrane’, sempre en filigrane – a dimensão material e de investimento... ‘Náo é prrêcise reescrevêarr os tecsts, pôorque os tecsts estáo bons... É só um pôcadinhe de fine tuning’. Reescrevi os textos. O Egypton passou a semana seguinte a fazer novas maquetes (fundos em azul e branco, em azul celeste, em branco de porcelana com estampas chinesas, sem estampas chinesas, em azul celeste com caracteres chineses sortidos... tudo com ainda mais leitura, tudo a respirar como nunca). O César esmerou-se numa composição que misturava sedas, paus de incenso, um Buda dourado e obeso e um par de sabres de abordagem e de pistolas de pederneira comprados numa loja chinesa. Nessa sexta-feira, enfim, o Sr. Hoffmann desceu ao nosso andar. A porta do departamento abriu-se com o esperado vigor, o ‘Bo-Asssh’ foi seguido de um esfregar de mãos impaciente. O Egypton, o Alexandre e eu formámos um semicírculo em volta do estirador onde estava exposto o resultado de tanto fine tuning. O Sr. Hoffmann sentou-se na cadeira do Egypton e iniciou o exame. Silêncio. Os minutos foram passando. De gorda lapiseira Montblanc em punho, dando estalidos com a língua, o Sr. Hoffmann ia rabiscando maquete após maquete, de sobrancelhas hasteadas até ao meio da testa. O cheiro a alho, apesar da janela aberta, tinha-se tornado intolerável. Por fim, o Sr. Hoffmann parou. Guardou a lapiseira, tirou os óculos (que lhe tinham deslizado até à ponta do nariz), depô-los solenemente sobre o tampo do estirador, endireitou-se na cadeira e inspirou profundamente. ‘Hum. O trrábalhe está muito bom… É o concepte… O concepte é que náo é... (estalou os dedos, os seus olhos percorreram o auditório, esquadrinharam o tecto… procurava o ‘mot juste' que definisse aquilo que o conceito não era...)... ‘náo é... (sing it!) ‘sexy’.
E, para desenjoar, nada como melaço. Drone Metal, por obra e graça dos Sollll o)))). É que é de Sol que preciso - estou neste momento à espera de que ele apareça. Eis 'Orthodox Caveman', mas título qualquer serviria. Tudo a fazer corninhos com os dedos, para isto parecer uma boda...

Telephone and rubber orchestra

I call, no-one answers... telephone and rubber band, dos Penguin Cafe Orchestra (com a ajuda do Fritz Lang). Vi-os (No Tivoli? No S. Luís?). O Simon Jeffes morreu uma meia-dúzia de anos mais tarde, e vieram-me lágrimas aos olhos. Durante boa parte do concerto, uma lata de coca-cola dançou em cima dum piano. Some things you never forget, no matter how drunk you are.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

E esta é para quem a apanhar: os Big Black em fogo. O Tipo magrinho (lean, mean, killing machine) é o notório Steve Albini, cozinheiro de grande mérito (true story), amigalhaço da Polly Jean, polemista consumado, produtor de quase tudo o que (da PJ ao In Utero dos Nirvana, aos Palace ou aos Pixies - olha, os Pichis), o Rock so-called independente de jeito (e o country, e o Folk) deu ao mundo nos últimos vinte anos. P.S.: He ain't skinny anymore, but he's still mean as hell (e o "Songs About Fucking" ainda arranca a tinta das paredes cá do tugúrio).

Mais um para a Clara

You Snake, you crawl between my legs... Pj Harvey em brasa, e eu com ela. Suspiro.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Como disse?

‘Mi-gué-el’... ‘Sim, Sr. Hoffmann’.... Ah, puta de vida. Quatro e meia, e, depois do sacramental ‘Bo-AAASSHHH’ (as in ‘boas tardes’, expressão transbordante de rústica portugalidade) que se tinha seguido à enérgica entrada no, chamemos-lhe assim, departamento de marketing (eu, português, autor dos dizeres, o Alexandre, francês, motivador encartado de equipas multidisciplinares e multinacionais, a Mariola – polaca, faz os bonecos – e o “SENHOR ENGENHEIRO”, façam favor, arqueólogo numismático, sigilógrafo, sobrevivente – até ver – de cancro da próstata, escarrador lusitaníssimo de craveira olímpica), o Sr. Hoffmann tinha tomado assento à mesinha do canto, e espiolhado durante uns minutos a minha súmula da crise económica em curso e a minha antevisão das cotações de valores em ouro físico (as opposed to ouro espiritual), com particular ênfase em moedas de ouro (palavra, ouro, que o Sr. Hoffmann se orgulha de pronunciar “Urrô”). ‘Sim, Sr. Hoffmann?’ disse eu, já em pleno voo para junto dele... ‘O Mi-guel diz aqui ‘a rêdução que se vem a obserrvarr nas tirragens das emissões’... Não pode sêarr ‘quê vem à obserrvarr-se’?... ‘Por acaso, não só pode, como deve... Bem caçada... E assim evita-se o innuendo do ‘se vem’... Ele estava sentado, eu em pé... Levantou para mim os olhinhos piscos, arregaçando bem alto as sobrancelhas, calado. Não tinha percebido... ‘Evita-se o verbo ‘vir-se’... A implicação de voyeurismo de ‘vir-se a observar’... A expressão não mudou. Não percebia em Português, não percebia em Francês. Nunca tinha seguido o cherne, peixe recalcado. Mas gostou de que eu tivesse tão prontamente reconhecido a sua superior maîtrise do Português... Palmas para mim.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O salário do medo

Os minutos passavam, e o Sr. Hoffmann continuava a falar com a Adelaide e o Mário; alguma coisa 'tava complicada', dizia ela; o Mário falseteou um 'Complicadíssima'. Santo adjectivo, complicada era o que a coisa realmente estava. Cinco e cinco da tarde, e aquele trio entre mim e a porta, entre mim e a liberdade... Mas o que quer que estivesse complicado não era, diria Hoffmann, a big deal: a Adelaide entrecortava gargalhadas com punhadas formidáveis nas costas de uma cadeira; o Mário, em pontas sobre os ténis Nike cor-de-rosa, com os jeans brancos enfiados pelo rabo acima até ao cóccix, cacarejava em êxtase. Mas a alegria geral não alterava o facto de entre mim e a porta se interpor o homem mais perigoso do planeta, Hoffmann o Huno, Cérbero (e cérebro) do meu inferno profissional, devorador impenitente de alho e de almas. Ah, a energia do desespero... Comecei a deslizar em direcção à porta como um ninja, a escorrendo como uma gota de mercúrio. Afinal, I am Snake. Pelo canto do olho, podia ver que o trio se mantinha coeso, que nenhuma cabeça se virara, nenhum olho encarnado (I spy with my little red eye) detectara perifericamente a subtil alteração da composição de luz e sombra (ena, poesia!) do escritório... Até o ‘até amanhã’ que lancei no momento em que pousei a mão na maçaneta me pareceu soar natural, apesar do nó que sentia na garganta... Era o momento crítico...’Miguel... (tem de ser ouvido, o "Miguel" do Hoffmann – é um Yodel tirolês que flutua no ar como um papagaio de papel... Mi-gué-el). Pode você êsperrarr, pôr favôr?’. Claro que espero por si, Sr. Hoffmann... Afinal, o que é que me espera a mim no meu covil? Família e amigos? A Zon TV Cabo? O jantar? Em três passos, o huno estava diante de mim. ‘Como é que você dirria: ‘eu estou ligado ao meu cão’, sem dizer ‘ligado’?... ‘Je suis attaché à mon chien, eu êstu ... (e esbracejava, tentando descrever o quê? Afecto? Amor? O Sr. Hoffmann, attaché... Ó Deus!...). ‘Les allemands sont très attachés à leur Mark... Ôs almáais estão muito... ?’ E calou-se. ‘apegados’, respondi eu. ‘Os alemães são muito apegados ao seu Marco’. ‘Apêgados?’ ‘Sim’. ‘Cerrteza? Apêgados? Attachés?’. Sim... ‘Bom, está cerrt. Muit obrrigado. Até amanhá’. Fizemos um tango à porta, que eu tinha aberto: ‘pôr fávôrr’, disse ele; ‘Ó Sr. Hoffmann’, respondi eu. Ele lá saiu, corredor fora. Freedom!