quarta-feira, 11 de março de 2009

Bravo!

O dia estava lindo, um dia de céu azul como só em Lisboa, azul daquele azul que maravilha os estrangeiros, e que deve ser um efeito óptico da conjugação do rio e do mar (refracção, ou então impedância, enfim, what do I know), e de um Sol que deixa quem passeia fazê-lo frescamente pela sombra ou aquecer-se, se quiser, passando para o sunny side of the street. Os ingleses usam “glorious” para descrever dias assim (também têm rios e mares com cidades à sua beira, os ingleses, mas, a menos que andem por cá, vêem poucos dias como aquele); “glorioso” é o adjectivo certo; para a maioria dos lisboetas e dos turistas, a cidade resumia-se naquela tarde de Sábado às imediações do Tejo. Para mim, era uma oportunidade para andar, andar quilómetros (7 por hora, mínimo); os quilos que me sobrecarregavam exigiam-mo: andar, e andar depressa. Andar depressa, mesmo com pressa, é coisa que os portugueses não sabem fazer; os que têm carro (a maioria) são piores peões que condutores, especialmente podendo gozar o Sol: a solo, arrastam-se, num ziquezague a um curto e lentíssimo passo da imobilidade absoluta; em parelha, trio, ou extended family, comportam-se como moléculas de gás, ocupando por inteiro os passeios, bloqueando quaisquer ruas, independentemente da sua largura; quando lhes rosno o meu “Desculpe, dê-me licença”, olham para mim assarapantados ou indignados, como se eu fosse um psicopata escapado do Júlio de Matos ou um extraterrestre desconhecedor dos mais elementares ditames da civilidade... Os que não têm carro, velhos e velhas que atravancam, inamovíveis, os passeios, em conversas sobre netos e o preço dos medicamentos, esses, então, olham para mim com verdadeiro pasmo; quando finalmente se arrastam do meu caminho, é quase sempre com um “faça favor” azedo, seguido provavelmente (já estou longe) de um colóquio sobre os maus modos da juventude, do respeito que no tempo do Salazar havia pelos "idosos", etc... Bottomline: tinha naquela tarde de evitar as multidões plácidas da beira-rio e a proximidade de centros comerciais, sempre pejada dos carros malparados (como o crédito) de famílias em pleno sobreendividamento – Lisboa, para mim, ficava portanto na direcção oposta à do rio, num trajecto de cerca de 50 minutos rumo a Entrecampos (Estrela, Rato, Marquês, Saldanha), e outros 50 back. Tendo chegado à rotunda de Entrecampos sem novidade, acendi um cigarro, e, sentindo-me já mais magro, espreitei o painel da paragem do 38 (738, na numerologia actual): faltavam 16 minutos para chegar. 16 minutos, mesmo ao fim-de-semana, são 20, ou mais (um minuto-Carris tem 75 segundos, no mínimo, em obediência à relatividade restrita tal como a propôs, sucinta e elegantemente, Einstein). Calculei que conseguiria, descrevendo uma diagonal recortada (qual caravela bordejante) de Entrecampos ao Marquês, apanhá-lo no começo da Braamcamp. Virei por isso para a 5 de Outubro. Estava a passar pelo Ministério da Educação quando resovi ver se, à falta de moedas, tinha uma nota de 5 para me munir de um título de transporte válido, ou se teria de “destrocar” – como deve dizer-se em bom Português – uma das de 20 que sabia ter comigo. E foi no acto de folhear o gordo maço de papel-moeda que ele me surpreendeu, a uma esquina: teria entre 50 e 60 anos (ou, como dizem os pivotos e pivotas, “entre 50 a 60”); estava vestido com dignidade (calças de bombazina castanhas, camisa branca e pullover também castanho, tudo com aspecto usado mas limpo), e usava uma bengala preta com, reparei depois, embutidos de laca encarnados. Dirigiu-se-me com um “desculpe..., senhor” que me fez parar (se me tivesse tratado por “jovem”, adeus). Aproximei-me: “Sim?”; “Posso... pedir-lhe.. um... favor... ?”. Todo ele era tremuras: voz, cabeça, mãos - Parkinson... Refreei a minha impaciência (os minutos-Carris estavam, ainda que com variável lentidão, a escoar-se): “Pedir-mo, pode, mas não sei se posso fazer-lho, porque estou com uma certa pressa”; “Agradeço-lhe... muito... a... sua... gentileza... Nunca... pensei... encontrar-me... nesta... situação... Imagine... que...”. O que eu imaginava era que, àquela velocidade, nem dali a 5 minutos saberia que favor queria o homem, afinal. Um “Por favor, diga-me que favor quer pedir-me” fê-lo chegar to the point, muito devagar: tinha dois autocarros para apanhar, e não tinha os dois euros e oitenta necessários; a doença tornara-o distraído; tinha-se esquecido do passe; havia uma filha que já deveria estar a ficar preocupada, e ali estava eu, senhor, educado, e com não uma, mas duas notas de 5 bem visíveis entre as de 20... Cheguei-me a ele para lhe dar uma delas... E senti-lhe o hálito. Os alcoólicos cheiram a álcool mesmo quando não estão com os copos, e, no caso de velhos bebedolas, esse cheiro é muito peculiar (alguma coisa a ver com o desarranjo do fígado e a deliquescência geral das vísceras), e peculiarmente repugnante (sei-o especialmente bem, por razões que aqui não interessam...). O malandro não parecia estar bêbedo, mas bêbedo era de certeza. O Parkinson era delirium tremens, ou se calhar puro teatro. Dei-lhe a nota, ainda aturdido pela súbita iluminação. “Obrigado... obrigado... Chegar... a... isto... Graças... a... Deus... que...”. Enfim, graças a Deus havia mesmo a jeito um pato constrangido e sem trocos flashing the cash. Teve o desplante adicional de me obrigar (mais dois minutos-minutos) a ajudá-lo a atravessar a rua na direcção da Avenida da República, e a ouvir-lhe a gratidão (outro minuto) e votos de saúde – “Também... já... fui... jovem...” (ah, cabrão!). Lá o deixei, furioso, cheio de vontade de me esconder para ver se não largaria a correr, lépido e sequioso, para a tasca mais próxima... Mas aí, adeus 38. Disparei em direcção ao Marquês. Pelo caminho, pensando melhor, tive de tirar o chapéu ao borrachón. A actuação (cada vez mais me parecia certo que fora de uma actuação que se tratara) tinha sido perfeita; o texto, irrepreensível; a sorte, que ajuda os audazes, tinha estado do seu lado, fornecendo um sucker ideal: se eu só tivesse notas de 20, toda a culpa acumulada que me pesa na consciência de nada teria valido ao mais desvalido dos doentes de Parkinson... Estava a chegar ao começo da Braamcamp quando o 38 passou por mim; ainda consegui, depois de um sprint prodigioso, dar-lhe uma palmada na garupa, mas não comovi o motorista com o meu esforço (são losers driving losers – costumam ser solidários com os utentes, ao contrário dos taxistas, losers que acham que cada cliente nada em dinheiro e só merece ser depenado). O painel da paragem indicava que o 38 seguinte estava a 18 minutos-carris de espaço-tempo; dali até ao meu destino, eu demoraria a pé menos de 20. Cheguei a casa cansado mas contente: a passeata fora dispendiosa em calorias, e os 3 euros e 60 (descontando o bilhete de autocarro poupado) que me tinha custado a comédia também não tinham afinal sido mal empregados...

2 comentários:

  1. Gostei muito deste. Quanto ao velhote, prefiro pensar que o dinheiro foi mesmo para o autocarro.

    ResponderEliminar
  2. Agora, após ler o teu post, entendo porque é que a observação de uma prima sobre as minhas actividades como cidadão pedestre (linguagem de burocrata ou de correspondente local do DN, mas oxímoro perfeito em Lisboa), ao longo da longa Almirante Gago Coutinho, te fez rir (expliquei-lhe que tinha ido a pé ao aeroporto e ela comentou "realmente, a andar assim, parecias um pouco maluco").

    ResponderEliminar