sexta-feira, 20 de março de 2009

Jesus loves you (everybody else thinks you're an asshole)

Tinha ido à FNAC do Chiado, depois de me ter pirado do trabalho uma hora antes da de saída (era dia santo na loja), para ver se arranjava um filmezito para o meu pai, já que era dia dele. Queria um Western (mon papa en raffole...), mas, se possível recente: o género está morto há trinta anos, mas, periodicamente, alguém se esforça por reanimar o cadáver. Uma das últimas tentativas foi do Ed Harris, e chama-se “Appaloosa” (starring o Ed, o Viggo Mortensen – já tinham contracenado na história de violência do Cronenberg –, o Jeremy Irons – outro cronenberguiano – e a Renee Zellwegger). A FNAC desconhecia por inteiro a existência do cavalo em questão (a FNAC e o mundo – não tinha sido exactamente um imperdoável ou uma dança com lobos...)... Shit... Uma súbita inspiração fez-me perguntar se não teriam ali à mãozinha o the proposition (em Portugal mais desconhecido por “Escolha Mortal”). Não é tecnicamente um Western: passa-se na Austrália, tem cangurus e aborígenes em vez de cascavéis e índios, ingleses em vez do 7.º de Cavalaria, mas o espírito é o do velho oeste, e há “extreme knife and gun violence”, segundo o New York Times; extreme knife and gun violence é sempre coisa boa; os actores são excelentes, e o argumento é do Nick Cave. Tinham o filme, e a uns inverosímeis 4,99 euros. Fechámos negócio. Eram quatro e um quarto. O dia estava razoável, e a temperatura perfeita para um brisk walk (derreti um par de quilos nas últimas semanas, mas, com 70, ainda me sinto pesado). Resolvi tomar the long way home, e em direcção ao Campo de Santana, trajecto que guarda uma das melhores (ou seja, piores) subidas da cidade – perto de 200 degraus desde as proximidades do Coliseu até ao citado campo –, para depois seguir até à Estefânia, Saldanha, Marquês, Amoreiras e daí (com uma paragem para entrega do presente e dos cumprimentos protocolares), para casa. Foi por alturas do Hospital da Estefânia que demos de caras um com o outro; ele ainda esboçou uma esquiva; eu ia distraído, e foi o movimento brusco do vulto que caminhava na minha direcção que me fez olhar para ele. Era o Coño – o “Zé” (uso um nome fictício, para lhe preservar o anonimato. Chama-se João. João Marques). Não nos víamos havia uns bons quinze anos. Esse último encontro (acidentalíssimo) tinha sido no Monumental: ele a lanchar com uma rapariga, eu a fazer minutos para um filme qualquer. Tinha-lhe detectado então no olá, no convite a sentar-me para um café e na curta apresentação à namorada, uma notinha de triunfo; ele, o medíocre, ridículo Coño (o meu amigo Miguel tinha-o crismado e o nome pegara) tinha acabado Direito; eu, o brilhante bêbedo, seu ídolo (e paixão recalcada), não. Comportei-me civilizadamente durante os dez ou quinze minutos que passei com o simpático casal. A rapariga (que não era feia) já tinha ouvido muitas histórias picarescas de Coño’s wild years aqui com o Snake (devidamente aparadas de excrescências pouco abonatórias para o João, e retocadas de detalhes que faziam dele, em vez de bombo da festa, um igual, igualdade que o recente canudo abolira: depois de humilhações incontáveis, Coño triunfara). He reminisced sobre os bons tempos, e eu não lhe rectifiquei os relatos; suportei-lhe o tom pouco subtilmente condescendente em que me perguntou o que andava a fazer (ele estava a fazer o estágio, eu a enfrascar-me todas as noites); com benevolente magnanimidade, quando eu fiz menção de pagar o café (alegando que o filme estava prestes a começar), ofereceu-se para mo oferecer. Aceitei, despedi-me da menina (uma Carla ou Sandra, aposto) com um par de beijinhos – era menina de dois beijinhos; quando estendi a mão ao João, contente por lhe ter concedido, sem que me saltasse a tampa, aquela pequena e pública vingança, ele resolveu dizer-me que “tínhamos” de nos encontrar, para pormos a conversa em dia... Um jantar, coisa assim. Qual era o meu número de telefone? Desisti de tentar conter-me. Não, não tínhamos de nos encontrar. Tínhamos acabado de pôr em dia a conversa. Almoços, jantares, encontros marcados, nem pensar. “E está fora de questão aturar telefonemas de um imbecil como tu, Coño”. A Carla ou Sandra ficou de boca aberta; ele ficou lívido; o sorrisinho do último quarto de hora evaporou-se. Virei costas, fui-me embora, e lá ficaram. Quinze anos passados, eu não tinha esquecido o episódio do Monumental; a esquiva desesperada mostrava que ele também não. "Olá, João", disse-lhe eu. Demos um passou-bem. Ele ia a arrastar um saco de viagem (um coisonite) a rebentar pelas costuras. Perguntei-lhe se vinha de viagem; não: eram livros de Direito; “tens escritório aqui?”; não, era técnico jurídico ("assessor") numa empresa de contabilidade pouco adiante. Enquanto falávamos, observei-o bem. Fatinho reles. Suado. Completamente careca. "Tás na mesma", disse-me ele; "Não, estou muito diferente - I’m no longer an asshole. Tu é que estás na mesma...”. A continuação da frase, calei-a, e ele não chegou lá. Sorriu, feliz pela détente, eu também, e assim nos separámos. Boa, Snake.

3 comentários:

  1. serei maldosa, mas que se lixe: adorei o pormenor de "carla ou sandra". eu também faço essas associações. essas que fizeste. sim, sim, essas mesmo. preconceituosa do caraças.

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  2. Esse beijo único foi sedimentando, acrescentaria, como Dupond e Dupont, "por aí abaixo", vindo sabe-se lá de onde (boa dica quanto à origem, apesar de ser do JAS: http://sol.sapo.pt/blogs/jas/archive/2006/12/04/O-dilema-dos-beijos.aspx ), e hoje não há mulher de futebolista que não se fique, ostensivamente, pelo monósculo da moda (o mesmo fenómeno observa-se com a cor do cabelo das mulheres, os nomes dos filhos etc). Acho desagradével ouvir dizer "sanita", mas também acho pretensioso quando alguém insiste no "encarnado", na "te'fonia", no "F'ederico". O Mundo, e o mundano claro, é sempre o nosso mundo privado. Mas o mundo é também um pouco maior - e habitado por gente um pouco mais interessante, e muitas vezes mais importante para a minha felicidade - do que o triângulo Lapa, Cascais, Avenidas Novas, tornado quadrilátero em matéria de monósculos pela inclusão recente da Amadora. Não sou leitor da Time mas foi o primeiro resultado da pesquisa no Google:

    "How Many Kisses?
    By Jennifer Billinson Monday, Mar. 08, 2004
    You must remember this: you were going in for a double European-style greeting kiss with a friend who was expecting only a single cheek peck. It's an awkward question that constantly creates trouble for travelers: How many times should you pucker up? Here's a handy guide:

    One: A single buss is acceptable in the U.S., but it's mostly a big-city phenomenon. Women will give a brief hug, while men shake hands. In the Middle East, one kiss on the lips is a normal greeting, but not between men and women.

    Two: Double up in Spain, Austria, Sweden, Hungary and, more recently, in Britain.

    Three or more: Triple kisses will work in Egypt, Russia, Switzerland and the Netherlands. Business in Belgium? Three kisses are a sign of respect for those at least 10 years older than you. Pack your lip balm in France; many people still insist on four kisses.

    Keep your lips to yourself: Germans rarely greet with a kiss. In Chile, opt for an abrazo (a handshake/hug hybrid). Skip the kiss and bow or shake hands instead when visiting Japan, China and Korea."

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  3. não resisto a pôr aqui, expressamente e à luz do sol, um excerto do dito post do JAS
    "A situação ainda se agravou quando se constatou a existência de uma ‘terceira via’: algumas pessoas ‘verdadeiramente bem’ entenderam que o beijo único era uma parvoíce de novos-ricos, de gente necessitada de se distinguir através de pormenores ridículos, e decidiu manter-se fiel à tradição dos dois beijos.

    E assim passámos a ter ‘gentinha’ pelo país fora cumprimentando-se com dois beijos (ou já só com um, porque entretanto começou a copiar o comportamento da classe acima), gente ‘bem’ que adoptou a moda do beijo solitário e gente ‘muito bem’ que se manteve fiel ao par de beijos."

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