sexta-feira, 27 de março de 2009

Spring cleaning

Dia de limpezas. Decidi começar pela cozinha – que é como quem diz, pela sala (vivo num submarino, só lhe falta ser amarelo; mais uns anos de fumo tratarão desse detalhe). Supostamente, o alumínio não oxida... O do meu escorredor de louça (se é que é assim que se chama...) está coberto de ferrugem e de sarro como os destroços de um navio encalhado. A palha-de-aço é inútil contra aquilo: só consegue deixar-me os dedos em sangue. Lembro-me de que tenho algures um velho par de luvas de borracha... Rebusco os armários. Não o encontro. Depois encontro-o. Está a desfazer-se. Paciência. Raspo as estratificações com uma velha faca de cozinha. De tão romba, só é útil como espátula - serve. Lembro-me do Vim Clorex e do esfregão Bravo, e do anúncio (na altura dizia-se “réclame”) do Ajax limpa-vidros: uma mulher nova, a limpar uma janela num apartamento; a câmara afasta-se, forma-se um quadriculado que vai crescendo, surgem mais mulheres, todas sorridentes, todas a limparem janelas; de mais longe ainda, vê-se a fachada inteira – é um prédio alto e moderno (“estilo internacional”), mas sem a desumanidade mancuniana do brutalismo, e há centenas de donas-de-casa felizes, de movimentos sincronizados, acenando, de paninho na mão. É uma imagem de harmonia doméstica que ainda hoje me enternece (a ausência de maridos só a confirma: estavam, felizes também, a fazer o que faziam os maridos: a trabalhar para a família). Happy days. É estranho, mas é assim, feliz e protegida, que recordo a minha existência nesse tempo (e, como o anúncio, a preto-e-branco. Abençoada memória, ainda que saiba que é falsa)... Voltei ao presente. Espreito as janelas. Estão tão manchadas que parecem de vidro fosco, mas limpá-las fica para a próxima, ou para a seguinte a essa. Cleanliness is next to godliness, mas o bom é inimigo do óptimo (ou o contrário. Paciência). Passo ao fogão, que está coberto de estalagmites. Poderia identificar a partir delas a minha ementa nos últimos dois meses, mas não é preciso – como sempre a mesma coisa. Destruir aquele aglomerado só com escopro e martelo. Decido-me por um gesto simbólico – umas passagens com um pano vileda imundo – e fica com um aspecto satisfatório (para os meus padrões de higiene actuais: desde que recuperei, mais ou menos pelo menos, a saúde mental, decaíram notoriamente. Que se foda. Alguma vantagem haverá na solidão absoluta). Passo, com dois passos, à casa-de-banho. Graças a Deus, alguém inventou a lixívia. Tenho dois frascos de litro e meio. Encho a banheira com água quente, deito lá para dentro a cortina do chuveiro (não é fácil mantê-la imersa: tenho de usar dois velhos halteres como lastro) e o tapete de borracha, rego tudo com o conteúdo de um dos frascos, e deixo a marinar. Abro o outro frasco, despejo metade pela parede abaixo (é de uma pedra ornamental que já foi castanha com veios esbranquiçados – agora, atapetada de fungos, está uniformemente alaranjada). O resto da lixívia vai para a retrete. O ar satura-se de vapores de cloro. Tenho a sensação de que a temperatura sobe de repente; fujo para a sala/cozinha, sento-me e acendo um cigarro. Apesar das janelas abertas, o cheiro pela casa é sufocante. Ocorre-me que posso ter destruído a penicilina do século XXI, o novo superantibiótico contra as novas superbactérias. I can live with that. Volto à casa-de-banho. Não estará tudo resplandecente, mas aguenta outro par de meses de desleixo. Ardem-me os olhos, parece-me sentir picadas no cérebro. É por isso que não se deve abusar da limpeza. É tóxica, a lixívia, e pouco amiga do ambiente. Não tenho nem virei a ter filhos, e não tenciono andar por cá mais que outro par de décadas. A Terra há-de durar até me comer, e portanto paciência, e que se foda o ambiente - ponho a banheira a vazar. A cortina ficou impecável (mas pendurá-la naquelas argolinhas de plástico é uma chatice que me apetece deixar para mais tarde. Deixo-a para mais tarde). O tapete parece ter perdido em flexibilidade o que recuperou em brancura - as bordas esfarelam-se. Os halteres também não se deram bem com a lixívia - perderam o que ainda tinham de tinta. A retrete não ficou mal (mas continua a ter uma auréola avermelhada na linha de água; como é – pun intended – for my eyes only, paciência). Acabei a corveia, por hoje. Estou cansado: os trabalhos da casa são duros: não me espanta que, tendo escolha, as mulheres prefiram ter empregos e deixar as lides domésticas para guineenses e ucranianas. Não posso pagar guineenses nem ucranianas, tenho de tratar eu do assunto. Paciência. Como uma vez cada dois meses chega bem para assegurar os meus novos mínimos, que se foda. Sinto-me triste. Tenho saudades de ser pequeno.

4 comentários:

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  2. "mulheres" em oposição a "guineenses e ucranianas" - interessante. se não me engano, também tu conheces pelo menos um caso em que a a condição feminina e a nacionalidade (ucraniana nesse exemplo que tenho em mente) formavam um corpo único, por assim dizer, e alguém pagava e não era para lhe sacudirem o pó. sem preconceitos: prefiro as guineenses, apesar de termos alguém para limpezas que dificilmente qualificaria como mulher, não se desse o inegável caso de ser uma portugesa, documentada, de nome carla, que vem uma vez por semana.
    em vez de saudades de ser pequeno devias ter saudades, já que não estás para lirismos românticos, de vê-las a trabalhar num arrozal (para colocar a estimulação visual num ambiente simultaneamente limpo e primaveril, mas também em homenagem ao director dum jornal onde em tempos trabalhei, nascido em Alcacer do Sal e com essa memória gráfica da sua terra natal).

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  3. tudo isto é triste. "mulheres" em oposição a "guineenses e ucranianas" é ainda mais triste. já é a segunda vez que sinto uma atmosfera algo (demasiado) preconceituosa nesta casa. é o cúmulo do triste. lixívia para almas, precisa-se.

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