segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O salário do medo

Os minutos passavam, e o Sr. Hoffmann continuava a falar com a Adelaide e o Mário; alguma coisa 'tava complicada', dizia ela; o Mário falseteou um 'Complicadíssima'. Santo adjectivo, complicada era o que a coisa realmente estava. Cinco e cinco da tarde, e aquele trio entre mim e a porta, entre mim e a liberdade... Mas o que quer que estivesse complicado não era, diria Hoffmann, a big deal: a Adelaide entrecortava gargalhadas com punhadas formidáveis nas costas de uma cadeira; o Mário, em pontas sobre os ténis Nike cor-de-rosa, com os jeans brancos enfiados pelo rabo acima até ao cóccix, cacarejava em êxtase. Mas a alegria geral não alterava o facto de entre mim e a porta se interpor o homem mais perigoso do planeta, Hoffmann o Huno, Cérbero (e cérebro) do meu inferno profissional, devorador impenitente de alho e de almas. Ah, a energia do desespero... Comecei a deslizar em direcção à porta como um ninja, a escorrendo como uma gota de mercúrio. Afinal, I am Snake. Pelo canto do olho, podia ver que o trio se mantinha coeso, que nenhuma cabeça se virara, nenhum olho encarnado (I spy with my little red eye) detectara perifericamente a subtil alteração da composição de luz e sombra (ena, poesia!) do escritório... Até o ‘até amanhã’ que lancei no momento em que pousei a mão na maçaneta me pareceu soar natural, apesar do nó que sentia na garganta... Era o momento crítico...’Miguel... (tem de ser ouvido, o "Miguel" do Hoffmann – é um Yodel tirolês que flutua no ar como um papagaio de papel... Mi-gué-el). Pode você êsperrarr, pôr favôr?’. Claro que espero por si, Sr. Hoffmann... Afinal, o que é que me espera a mim no meu covil? Família e amigos? A Zon TV Cabo? O jantar? Em três passos, o huno estava diante de mim. ‘Como é que você dirria: ‘eu estou ligado ao meu cão’, sem dizer ‘ligado’?... ‘Je suis attaché à mon chien, eu êstu ... (e esbracejava, tentando descrever o quê? Afecto? Amor? O Sr. Hoffmann, attaché... Ó Deus!...). ‘Les allemands sont très attachés à leur Mark... Ôs almáais estão muito... ?’ E calou-se. ‘apegados’, respondi eu. ‘Os alemães são muito apegados ao seu Marco’. ‘Apêgados?’ ‘Sim’. ‘Cerrteza? Apêgados? Attachés?’. Sim... ‘Bom, está cerrt. Muit obrrigado. Até amanhá’. Fizemos um tango à porta, que eu tinha aberto: ‘pôr fávôrr’, disse ele; ‘Ó Sr. Hoffmann’, respondi eu. Ele lá saiu, corredor fora. Freedom!

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