quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Is it safe?

Tinha passado mais de um ano desde que o Sr. Hoffmann definira o ‘concepte’ (pronunciar à portuguesa) para a colecção: o chá, o seu cerimonial, impregnados da espiritualidade, da serenidade, da sabedoria orientais, etc. Confúcio meets a Arte da Guerra (porque a coisa também metia piratas, grandes apreciadores de chazinho – bebido da melhor porcelana com o mindinho bem esticado). Eu tinha ‘pesquisado’ (folheara “O Ritual do Chá” e três ou cartapácios sobre porcelana) e escrito; o Egypton tinha desenhado as maquetes, sempre atento a que tivessem leitura e respirassem. O César fizera os ‘shootings’. Ao longo de muitas semanas, o Sr. Hoffmann fora recebendo os frutos do nosso trabalho; tinha reunido separadamente com cada um dos envolvidos; tinha convocado a ‘equipa’ para ‘briefings’, perorado longamente sobre assuntos elevados e decidido secamente, cortantemente, em questões de lana caprina, fiel à sua divisa – be practical. Tinha dado ordens e contra-ordens, mudado de opinião vezes sem conta; por fim, o dificílimo parto terminara: uma bela manhã, o Alexandre comunicou-nos que o ‘lançamento’ estava por horas. O dia passou, mas nada. Depois passou a semana. Concluí que nos céus, os astros não tinham assumido a configuração propícia; tinha passado o momento psicológico. Lançamento abortado. Meses depois, às cinco para as cinco da tarde de uma Quinta-feira, estava eu a arrumar a minha tralha para ir para casa, a Sandra (a secretária do Sr. Hoffmann) telefonou-me: ‘o patrão’ queria dar-me um briefing... Subi, com a morte na alma, até ao 5.º andar. Passei pela Sandra, que, entre duas baforadas e com um sorrisinho trocista a mostrar os dentes estragados, me disse que entrasse. Dei com o Sr. Hoffmann confortavelmente reclinado, de perna traçada, afastado da mesa onde se acotovelavam pilhas de livros sobre porcelana e louça da Companhia das Índias, catálogos de leilões, folhetos antigos e as peças da colecção; começou por me dizer que os meus textos estavam bons (mau sinal), e que se tratava apenas de fazer o ‘fine tuning’ (sinal péssimo). Um pouco mais de espiritualidade oriental, mais epopeia portuguesa no Oriente e encontro de mentalidades, culturas e religiões… E mais piratas. ‘Parra os pirratas, porrcelana erra urrô’. E toda a gente gosta de piratas – românticos, audaciosos. Eu repeti o que já lhe tinha dito muitas vezes – em matéria de pirataria , os portugueses (como os espanhóis) eram os patos... ‘O Miguel sabe isso, mas a maiorria das pêssoas náo’. Good point. Queria também a história de D. Catarina de Bragança, que introduzira o hábito do chá em Inglaterra, e mais passado glorioso e aventureiro das quinas... Talvez Fernão Mendes Pinto (‘Pode você lêarr a “Perregrinaçáo”, e encontrrarr as referrências à pôrrcelana?’)… E, já agora, ‘en filigrane’, sempre en filigrane – a dimensão material e de investimento... ‘Náo é prrêcise reescrevêarr os tecsts, pôorque os tecsts estáo bons... É só um pôcadinhe de fine tuning’. Reescrevi os textos. O Egypton passou a semana seguinte a fazer novas maquetes (fundos em azul e branco, em azul celeste, em branco de porcelana com estampas chinesas, sem estampas chinesas, em azul celeste com caracteres chineses sortidos... tudo com ainda mais leitura, tudo a respirar como nunca). O César esmerou-se numa composição que misturava sedas, paus de incenso, um Buda dourado e obeso e um par de sabres de abordagem e de pistolas de pederneira comprados numa loja chinesa. Nessa sexta-feira, enfim, o Sr. Hoffmann desceu ao nosso andar. A porta do departamento abriu-se com o esperado vigor, o ‘Bo-Asssh’ foi seguido de um esfregar de mãos impaciente. O Egypton, o Alexandre e eu formámos um semicírculo em volta do estirador onde estava exposto o resultado de tanto fine tuning. O Sr. Hoffmann sentou-se na cadeira do Egypton e iniciou o exame. Silêncio. Os minutos foram passando. De gorda lapiseira Montblanc em punho, dando estalidos com a língua, o Sr. Hoffmann ia rabiscando maquete após maquete, de sobrancelhas hasteadas até ao meio da testa. O cheiro a alho, apesar da janela aberta, tinha-se tornado intolerável. Por fim, o Sr. Hoffmann parou. Guardou a lapiseira, tirou os óculos (que lhe tinham deslizado até à ponta do nariz), depô-los solenemente sobre o tampo do estirador, endireitou-se na cadeira e inspirou profundamente. ‘Hum. O trrábalhe está muito bom… É o concepte… O concepte é que náo é... (estalou os dedos, os seus olhos percorreram o auditório, esquadrinharam o tecto… procurava o ‘mot juste' que definisse aquilo que o conceito não era...)... ‘náo é... (sing it!) ‘sexy’.

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