terça-feira, 12 de maio de 2009
Discipline is his passion
O meu pai diz que só come por uma questão de disciplina. Ao ouvir-lhe a frase, nunca deixo de rir para comigo: o homem levanta-se (com grande relutância) às onze; às duas da tarde, já está geralmente com os copos; fuma duas dúzias de cigarrilhas por dia; passa todo o tempo em que não está deitado sentado; excepto nos quatro anos da tropa, nunca tomou um duche: o banho de imersão diário é um ritual de uma hora que assegura a transição da cama para a “deck-chair” (igual àquelas em que, nos transatlânticos de que tanto gosta, os passageiros da primeira classe tentavam enganar o enjoo) em que, refastelado, pouco depois do meio-dia, já está a beberricar o seu primeiro whisky; no que toca a alimentos sólidos, privilegia gelado, chocolate e bolachas, condescendendo (porque é pretexto para beber vinho) em petiscar uma fracção do que para ele cozinha a minha mãe (que também lhe lava e passa a ferro a roupa, lhe faz a cama, etc.). Sai de casa (não contando com as incursões bidiárias ao “Carrocel”, onde toma café, o único vício que admite ter, e, semanais, ao banco), meia-dúzia de vezes por mês – para ir à Baixa ou às Amoreiras comprar mais livros, mais dvd’s (e, em grande segredo, com dissimulações de correio de droga em aeroporto, mais comboios eléctricos); nunca entra num supermercado ou numa mercearia, nem, desde há uns meses, numa tabacaria – tudo o que bebe, tudo o que come, tudo o que fuma, é comprado por mim; nunca paga uma conta senão por meu intermédio – entrega-me os extractos e o dinheiro, e eu trato da chatice de ir ao multibanco... Esta descrição da vida dele (e, por implicação, da minha) suscita geralmente reacções do género “mas porque é que te sujeitas a isso? Ele que se desenrasque, que trate de si próprio!”. O problema é que ele não o faria; se eu me demitisse, o fardo transitaria (mais um) para a minha mãe, enquanto os suportasse (aos fardos e ao marido); depois, o homem arrastaria o tempo que lhe restasse a embebedar-se pelos cafés da vizinhança, como tantos alcoólicos... Antes de mais, “o homem” é meu pai: por absurda que seja a minha vida, a metade “Y” dela, devo-lha. Para além disso, quando morrer, é com o dinheiro que juntou (ele, essencialmente, que a minha mãe, poupada e sensata que sempre foi, era professora de liceu) que eu tenciono esperar (livre da tortura do trabalho – das de todos os trabalhos) pelo fim dos meus dias. Por isso aguento, e aguentarei o tempo que for preciso... Mas quando o ouço falar de disciplina, não posso impedir-me de rir...
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siempre como culebra...
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