sábado, 14 de fevereiro de 2009

Fever

Acabo de descobrir, folheando bocejante o bocejante “Actual” do Expresso (o caderno formerly known as “Cartaz”), que morreu (com a inverosímil idade de 62 anos) o grande Lux Interior, vocalista (ou cantor, para quem tenha, como eu, uma noção ampla, amplíssima, do conceito de “cantar”) dos Cramps. Estilisticamente, acaba de me dizer a wikipedia, os Cramps faziam (frequentemente em simultâneo e delirante caos) garage punk, punk, trash rock, rockabilly e, acima de tudo, psychobilly (“Psychobilly is a genre of rock music that mixes elements of punk rock, rockabilly, and other genres. It is often characterized by lyrical references to science fiction, horror and exploitation films, violence, lurid sexuality, and other topics generally considered taboo, though often presented in a comedic or tongue-in-cheek fashion”, informa a wikipedia ), o estilo em que mais longe o seu génio (essencialmente o do grande Lux) atingiu o zénite. Tenho meia-dúzia de álbuns deles (incluindo um par de compilações), material mais que suficiente para conhecer o melhor do muito (muitíssimo – mais prolíficos, ou mais prolixos, só para aí os Fall) que produziram ao longo de uma carreira (termo a tomar também na mais vasta das acepções) de mais de trinta anos. Socorrendo-me da definição de “psychobilly”que há pouco surripiei, é-me fácil demonstrar como se lhe adequa o corpus crampi – “My Daddy Drives a UFO” (sci-fi); “Human Fly”; “I Was a Teenage Werewolf”; “Zombie Dance” (horror); “Can Your Pussy Do the Dog”; “You’ve Got Good Taste”; “Hot Pool of Womanneed” (exploitation, violence, lurid sexuality). De “other topics considered taboo” também não há escassez no cânone crâmpico, desde o canibalismo à coprofagia, do incesto ao parricídio. Em boa verdade, o tabu era o território deles. E se também é verdade da boa que o seu viscoso rasto pelos domínios do interdito tresandava a gozo, não o é menos que, no seu melhor (1979 – 1983), sob o riso e as piadas de quase sempre péssimo gosto, havia uma corrente muito forte e perturbadora de ameaça, medo e demência que os aproximava muito mais dos Birthday Party/early Nick Cave (ou, mais recentes, os Gallon Drunk) que de palhaços como os Reverend Horton Heat ou Zombina and the Skeletones (to name but two, que a lista de assholes whose dream is to be the next Cramps é infindável). And man, could they rock! Não que soubessem tocar (ou cantar, como deve ter ficado claro); a risível incompetência técnica,o absoluto desconhecimento dos instrumentos, o total desprezo pelas noções de harmonia, ritmo, melodia, tom ou quaisquer outras que integrem o mais rudimentar currículo conservatorial, pelo menos nos primeiros anos, eram não só mais que manifestos, como também – nesse aspecto, de acordo com a mais rigorista ética garage-trash-punk – orgulhosamente ostentados. That was not the point. E qual era o point? Bom, antes de mais, sexo, em doses maciças, cavalares, exposto de modo insuperavelmente boçal e grosseiro, sob todas as formas e em todas as configurações – da punheta ao sadomasoquismo à orgia the-more-the-merrier; depois, a celebração do amor ilimitado e genuíno pela trash-culture americana – dos hambúrgueres e drive-ins, carros com barbatanas e gajas com mamas enormes, aos filmes sub-série-Z, literatura pulp, revistas porno, freak e peepshows… enfim, se era inteiramente alheio à mais remota ideia de bom-gosto, bom-senso, inteligência, relevância social ou política; se suava, arfava, fumegava, fodia, fedia, desgostava, escandalizava, repugnava ou induzia vómitos, então era temática do domínio da crampologia. Eram os John Waters do rock (com a diferença de que o John Waters sucks – cock and gas). Eram também um dos melhores grupos da história do rock: três das suas “canções” originais estão entre as mais fenomenais que alguma vez ouvi ou ouvirei: TV Set, Garbageman, Thee Most Exalted Potentate of Love – e isto significa que as ponho a par do que de melhor fizeram os velvet Underground, os Joy Division ou os Sonic Youth. E depois, há as versões – Strychnine, Tear It Up, Fever, superiores a todas as outras que conheço (incluindo o Fever clássico da Peggy Lee – that’s how good they were). A partir de 1983 (ano do Smell of Female, ao vivo, fabuloso, e do Off the Bone – compilação com o absolute best, para quem ache que one dose of the cramps is enough), as coisas entraram na rotina. O Date With Elvis ainda quase makes the grade, mas o resto (ainda que invariavelmente haja uma ou outra jóia entre o pechisbeque) é refugo, feito para pagar o spandex, as tintas para o cabelo e o verniz para as unhas, alguma comida e quantidades industriais de droga. O bom do Lux não deixou um cadáver bonito, mas só porque não morreu novo (os Cramps clássicos tinham todos, senão beleza – estou a pensar no Bryan Gregory e no Nick Knox –, certamente sub-z-movie star looks, no caso do vocalista tema deste texto já longo; quanto à guitarist-cum-dominatrix Poison Ivy, era simplesmente de pasmo), e não morreu novo porque nada é mais americanamente trashy que uma puta gasta e desbocada. Possa a tua alma, Lux, contorcer-se eternamente de prazer nas chamas do Inferno.

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