sábado, 11 de abril de 2009
Têm preocupações, pequenas e grandes – estacionar o carro, fazer o dinheiro chegar para um tudo feito de cada vez mais coisas, aturar o emprego que pode acabar a qualquer momento, educar os filhos, aguentar um casamento gasto, esgotado, sem desejo, sem nada senão as preocupações a ampará-lo... Têm alegrias: aniversários, o clube que ganhou e está na luta pelo título, roupas novas, um creme ou uma dieta que funciona, não notas?, os dias bonitos que pedem praia, saídas com amigos, as férias, uma ou outra noite como no início, um gesto irreflectido de ternura, às vezes nada, só vontade de sorrir... Antecipam, em conversas de que apanho fragmentos, os prazeres e as contrariedades; alegram-se, riem, enervam-se, algumas choram, outras enfurecem-se, fazem planos, sonham mudar de vida, refazem os planos, a vida continua, esquecem os planos, esquecem-se de que fizeram planos, vivem. Cruzam-se comigo pelas ruas, a pé ou de carro, impacientam-se atrás de mim ou à minha frente em filas nos supermercados, bebem café ou cerveja, gozam o sol, sentadas umas com as outras em esplanadas, cochicham, preocupadas ou contentes, fumando, à porta de lojas, de escritórios, de centros comerciais... As da vizinhança foram-se habituando a mim, sempre sozinho, sempre apressado, sempre educado, novo ainda mas mais velho, sorridente ainda, mas mais triste. Chegámos aos bons-dias e boas-tardes, fomos dizendo umas coisas sobre o tempo, sobre futebol, sobre nada. Algumas, mais distraídas, tomam-me por uma delas, outras, suponho, fingem fazê-lo. À noite, ocasionalmente, apanho-lhes as silhuetas em contraluz enquanto jantam em família; depois vêem televisão (é o que significam os clarões intermitentes na semiobscuridade das salas). Mais tarde, ouço-as baixar persianas; se olharem para as minhas janelas, verão os clarões intermitentes na minha sala, ou, mais tarde, só a escuridão. Todos os dias janto, vejo televisão, durmo. Os meus dias acabam, como os das pessoas, todos os dias. Um dia, agarrando no que lhes resta de memória, todas fazem um balanço: os carros que foram mudando até não haver nenhum, o dinheiro que nunca chegava mas que foi chegando, o emprego que até deixou saudades, os filhos que tiveram filhos, o casamento que aguentou afinal tudo menos a morte... O meu balanço está feito há muito; é curto, guardo-o para mim. Quando a soma do tempo se aproxima do zero, e tudo se embota e se faz difuso, à beira do fim é frio o que se sente: está sempre frio. Para quem quis viver como para quem se limitou a ver, a única coisa, a última coisa antes do fim é o frio.
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ai antes do fim é o frio? devias contar essa às duas santolas do almoço de hoje, compradas no mercado de olhão, depois dum passeio along the waterline, by the sea, humming some tune picked up from the past (or buzzing like a low flying bee, if you're more into flowers). mas é o risco que separa a boémia (a que já não precisa de sair à noite nem de vadiar compulsivamente) da burguesia (a dos carros e das televisões acesas para matar a solidão, sobretudo aquela em famíla). quem não vive como pensa, acaba por pensar como vive ou nunca chega a fazê-lo (a viver pois). páscoa feliz.
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